Com a oficialização da ocupação portuguesa do
sul da Barra do Rio Grande em fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva
Paes determinou a construção de defesas militares para assegurar o controle de
uma região também almejada pelos espanhóis. Para garantir a posse, Silva Paes
preocupou-se em instituir uma Fazenda Real para a criação de gado voltado a
alimentação e a criação de cavalos para montaria das tropas, escolhendo o lado
norte da barra na localidade do Bojurú, em São José do Norte. Conforme Corcino
Medeiros dos Santos (Economia e Sociedade do Rio Grande do Sul século XVIII),
a criação de cavalos era tão essencial que foi assim que a tropa de cavalaria
adquiriu tamanha importância e prestígio, a ponto de tornar-se a principal arma
de ataque e defesa naquele Continente. Ainda em meados do século XIX, quando os
líderes farroupilhas precisaram de infantaria, tiveram que lançar mão de
escravos, pois andar a pé e combater a pé, era por demais degradante.
A PRIMEIRA ESTATAL
Conforme João Borges Fortes (Rio Grande de
São Pedro), Silva Paes, criou a Estância Real do Bojurú para recolher
animais acobertando-os de um golpe de mão inimigo e instalando-os em campos de
pastagens superiores e de maior superfície territorial. Quando não fosse
praticável a passagem de animais para a parte de Bojurú, pela rudeza das
estações, foram aproveitados os campos do Rincão da Torotama para a estadia dos
gados e animais apreendidos.
Ainda em 1737 o brigadeiro José da Silva Paes
em carta a Gomes Freire de Andrade comunicava que “já se acham corridas mais de
2.000 vacas; espero cresça o número e já se acham marcadas para Sua Majestade,
mais de mil que faço conta passá-las para a outra parte para um rincão de
admiráveis pastos, donde andam também as cavalhadas; quero ver se pode ajuntar
alguma eguada para que pela produção destes gados, se sustente a guarnição e
sobeje e há cavalaria para todo o serviço”, carta de Silva Paes a Gomes Freire
in João Borges Fortes (O brigadeiro José da Silva Paes e a fundação do Rio
Grande). Em 21 de junho de 1737, já haviam sido enviadas 3.000 vacas para a
Estância Real do Bojuru.
Para administrar a estância foi nomeado Cosme da Silveira
com o benefício do quinto de toda a produção. Nos primeiros anos, a estância do
Bojurú era alimentada com o grande rebanho que existia entre a Lagoa Mirim e o
Oceano. No ano de 1738 havia mais de 1.500 éguas e mais de 2.500 vacas,
esperando a chegada de mais 8.000. O objetivo era totalizar uma reserva de
45.000 animais. Para Corcino dos Santos, tudo indica que o alvo pretendido deve
ter sido alcançado, mas o abandono e as más administrações vieram destruir os
projetos daquele governador. Contribui para explicar a decadência deste que foi
o primeiro projeto estatal no Rio Grande do Sul o ofício do vice-rei Luís de
Vasconcelos a Martinho de Melo e Castro (1784): “Se os projetos deste zeloso
governador se tivessem adiantado e se os meios correspondessem aos seus fins,
não se teria tudo perdido, porque ainda existem memórias de que não se cuidando
naquele estabelecimento, como devia ser, foi o número de animais tão grande e
estes por falta de providência cheios de tanta ferocidade que o governador
Gomes Freire achou melhor destruir inteiramente esta fazenda do que tentar
outra experiência”. Gomes Freire de Andrade visando o comércio do couro para a
Portugal autorizou a eliminação do gado selvagem na estância real, desta forma
à carne era desperdiçada para obter o couro, inclusive com o abate de cavalos e
éguas. “Com este sucesso ficou reduzida àquela formidável fazenda a uns campos
devolutos, que ainda conservam restos daqueles animais que puderam escapar de
tão horrorosa carniçaria, os quais fazendo-se muito rebeldes com a fartura
daquelas vastas campanhas se embrenharam de tal modo que não puderam ser
vistos...”.
Conforme o Vice-Rei se a Fazenda tivesse sido bem
administrada, haveria carne em “abundância para o fornecimento de todos os
indivíduos que sustenta, porém ainda outra tanta quantidade de couros para
maior rendimento daquele Continente. Mas como só se cuidou então de estabelecer
ordenados avultados a administradores poucos zelos, que procuravam os seus
particulares interesses e não se embaraçavam com o que tinham a seu cargo, não
podia deixar de produzir péssimas conseqüências o mesmo que sendo bem regulado
daria grandes utilidades”.
A Fazenda Real era o conjunto de bens pertencentes à
Coroa, também a ela pertencendo direitos, contratos e arrendamentos. Seu
principal objetivo era regularizar a administração financeira da Colônia
cabendo ao provedor cuidar da arrecadação de tributos e direitos devidos à
Coroa, estabelecendo alfândegas e demais repartições para tal finalidade. Nas
alfândegas se processava a arrecadação da dízima (10% do produto das terras,
mares, animais) das mercadorias que viessem para as terras do Brasil ou que
delas saíssem.
A posição de Gomes Freire de Andrade situa-se num
contexto de valorização do couro no comércio da Colônia com a Metrópole. O
tempo provou que sua ação foi incorreta, pois com a invasão espanhola da Vila
do Rio Grande em 1763 e a fuga de parte da população e de tropas para São José
do Norte, a Fazenda Real teve que arcar com pesadas despesas para a manutenção
dos militares portugueses, não havendo carne ou cavalos disponíveis,
evidenciando a falta que fez a Estância Real do Bojurú.
Francisco Betamio em 1780, também criticou a má
administração da Estância Real afirmando que os capatazes além do soldo
recebido plantavam para si e aproveitavam-se das leiterias das vacas mansas.
Eram mortos animais em excesso para o sustento da peonada. Os melhores cavalos
eram utilizados pelos peões que os maltratavam e abandonavam na estância. Os
cavalos adquiridos eram marcados, tendo a orelha direita cortada, o que era
chamado de “reiunar” ou “reiúnos”, pertencentes ao rei. Assim como o gado, os
cavalos não recebiam o cuidado devido. As tropas não tinham cavalos suficientes
e de qualidade.
Os cavalos do Exército não poderiam ser utilizados em
outras atividades e para os deslocamentos das tropas era necessário um número
considerável deles, pois cada companhia de 50 praças e 1 peão deveria ter 153
cavalos e 60 mulas, totalizando 213 animais. A disponibilidade quantitativa e
de qualidade de animais era essencialmente para o controle das fronteiras e
repressão ao contrabando.
O fracasso da Estância Real também está associado à
mentalidade do período que beirava o sadismo além da depredação de grande parte
do rebanho como registrou Aires de Casal (Corografia Brasílica): “Toda a
guerra era contra as vitelas, e de ordinário uma não chegava para o jantar de
dois camaradas, porque acontecendo quererem ambos a língua tinham por mais
acertado matar a segunda do que repartir a da primeira. Havia homem que matava
uma rês pela manhã para comer-lhe um rim assado e para não ter o incômodo de
carregar uma posta de carne para o jantar, onde quer que parava, fazia o mesmo
àquela que melhor lhe enchia os olhos”.
Corcino dos Santos conclui que, “a iniciativa estatal na
criação de animais foi um malogro quase completo. Ao invés de representar um
alívio para a Fazenda Real, representou um ônus. As condições naturais eram
inteiramente favoráveis a uma iniciativa dessa natureza. Mas a má
administração, o descaso da coisa pública e o roubo contínuo a condenaram ao
fracasso”.
Atividade com o gado na década de 1820. Jean Debret. |
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