"para que o mais
banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos
ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador
de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê
tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a
narrasse." (Sartre, A Náusea. Editora Nova Fronteira, 1983).
O primeiro romance de Jean-Paul-Sartre (1905-1980) está completando 80 anos! “A
Náusea” foi publicado em 1938 e permite
observar a trajetória de homens reais destituídos de relevância social tendo
como pano de fundo o mundo real.
A estória é narrada em
terceira pessoa e se baseia nos diários de Antoine Roquetin, um fictício
historiador que viajou pela Europa e se estabeleceu em uma pequena e também fictícia
cidade portuária da França: Bouville. Nesta localidade ele começa a escrever a
biografia de um marquês do século XVIII e também um diário intimista que o leva
a uma reflexão radical de sua existência e quanto ela é vazia e sem sentido.
Esta realidade do vazio existencial se traduz enquanto uma náusea visceral. A
existência humana e a noção de liberdade e concretude são arrastados para uma
viagem interior sem garantias de um porto seguro. Sartre escreveu o livro o “Ser
e o Nada” em 1943, mas neste romance já estão colocados várias discussões do
Existencialismo sartreano. Martin Heidegger é uma influencia fundamental para
Sartre pois aquele filósofo alemão pensava que o ser humano vem do nada e se
dirige para o nada. Vindo do nada ele somente passa a existir, quando começa a fazer-se, a
construir-se. Repetindo Heidegger, a existência humana é sempre um projeto e existir
é projetar-se para o futuro.
A concepção de historicidade
e de ciência histórica também foge dos enfoques tradicionais:
“Não se trata de pensar mais a História com H
maiúsculo, como história de datas e heróis, de grandes feitos. A história não
contém certezas e uma ordem rigorosamente lógica, e isso porque é feita por
nós, seres humanos comuns, Para-sis que necessariamente buscam em vão ser o que
nunca serão, a completude. Com o passar dos meses, Roquentin começa a
identificar suas sensações, o estranhamento que passa a ter diante de uma folha
de papel, uma maçaneta, uma raiz de uma árvore. A contingência é descoberta como
uma náusea, como um desvelamento vertiginoso do qual não pode se livrar porque
descobre que ele se identifica com a própria Náusea. (...)Dizer que a história
está ausente de A Náusea é ainda
pensar a história com H maiúsculo, é ainda pensar que históricos são somente os
grandes acontecimentos feitos por grandes homens, é ainda conceber a História
como encadeamento necessário entre os fatos, é ainda acreditar na História que
Sartre começa a destruir nesse romance. E a história que começa a surgir em seu
lugar é a história contingente realizada por “apenas indivíduos”, é a mesma que
aparecerá como estrutura necessária ao Para-si em O Ser e o Nada, e é a mesma que ganhará concretude e peso extremo
em Crítica da razão dialética. Se
talvez seja uma “História” que provoque
o afogamento de Sartre na história real, se talvez ele precisou de uma guerra
mundial para dar importância mais concreta aos problemas históricos, esse ato
revela que tudo é história, até mesmo a vida pacata e tediosa de um historiador
em Bouville. Muitos dos personagens de Sartre tentam sair da história, mas, ao
se afogarem nela, aprendem que, mesmo que saiam desse rio, terão para sempre as
marcas e cicatrizes dessa luta contra (e portanto também com) a história”.[1]
Em Sartre a existência prece a essência, ou
seja, os homens nascem vazios e sem razões metafísicas para existirem: a Ideia
de Deus e de Natureza Humana não teriam fundamento. Como primeiro existimos
para depois construirmos nossa essência em sociedade, a essência é liberdade, o
homem está condenado a liberdade.
“Sinto vontade de vomitar
– e de repente aqui está ela: a Náusea. Então é isso a Náusea: essa evidência
ofuscante? Existo – o mundo existe -, e sei que o mundo existe. Isso é tudo.
Mas tanto faz para mim. É estranho que tudo me seja tão indiferente: isso me
assusta. Gostaria tanto de me abandonar, de deixar de ter consciência de minha
existência, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por
todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca… E subitamente, de repente,
o véu se rasga: compreendi, vi. A Náusea não me abandonou, e não creio que me
abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma
doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu”.
Gerd
Bornheim interpreta a experiência da náusea
em três níveis: a necessidade de converter a revelação do absurdo em um sentido
que justifique a existência humana: o existencialismo deve ser um Humanismo;
revela a consciência que é o “núcleo instantâneo” de minha existência; a consciência
não pode ser sem o outro que não ela mesma, ela só existe por aquilo do qual
ela tem consciência.[2]
O esforço de Sartre foi de engajar-se a história presente e combater as
teleologias de direita e esquerda, que inviabilizassem o indivíduo de exercer sua
liberdade e todo o peso de responsabilidades inerentes a esta condição. Bornheim[3]
analisou que entre o livro A Náusea
(no qual a História é um absurdo destituído de logicidade) e o livro Crítica da Razão Dialética, Sartre já se
volta a “estabelecer uma história humana com uma verdade e uma
inteligibilidade”, tese que seria escrita no volume 2 da Crítica da Razão Dialética o qual nunca foi publicado: o marxismo
escrito na perspectiva humanista do existencialismo sartreano.
No epílogo do livro o
personagem Roquentin vê na literatura um caminho para obter a liberdade e construir
uma existência com autenticidade:
“Enquanto espera o trem para
Paris, começa a pensar na música, na cantora, no compositor e nota na música a
existência daquelas pessoas, que a arte os fizeram existir, este pensamento lhe
dá uma certa alegria e começa a pensar no que poderia fazer para existir de
fato, e começa a ver uma possibilidade de escrever um romance “[...] Um livro.
Um romance. [...] Um livro. Naturalmente, no inicio seria um trabalho tedioso e
cansativo; não me impediria de existir e de sentir que existo.”
[1] SOUZA, Thana Mara de. A
presença da história no “primeiro” Sartre: Roquentin e a náusea frente à ilusão
da aventura heróica In: Princípios. Natal: v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 87-105.
[2]
BORNHEIM, Gerd. O Existencialismo de Sartre. In: Curso de Filosofia. 11ª
ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 232-243.
[3] BORNHEIM, Gerd. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 1984, p.
226-227. O autor questiona sobre a transição do pensamento do plano
meta-histórico (livro O Ser e o Nada)
ao histórico.
A Náusea em Quadrinhos. Ilustração de R. Crumb. The Graphic Canon 3. Seven Stories Press, 2013. |
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