Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 8 de maio de 2018

MICHAEL GEORGE MULHALL


          A presença de comerciantes ingleses em Rio Grande remonta ao século XVIII e nas duas primeiras décadas do século XX foi registrada nos escritos de John Luccock e Auguste Saint-Hilaire. O Porto do Rio Grande será o fator de atração para o desenvolvimento do comércio de exportação e importação que mobilizou o interesse inglês. Em 1801 foi criado o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, ampliando os laços entre os comerciantes destes países. Entre os irlandeses que estiveram em Rio Grande, Michel George Mulhall deixou registros de sua viagem.


Mulhall  nasceu em Dublin em 1836 e faleceu na mesma cidade em 1900. Em 1858, com apenas 22 anos, buscou o comércio na América do Sul fundando, em 1861, o jornal Buenos Ayres Standard. Este foi o primeiro periódico diário em inglês da América do Sul, num empreendimento jornalístico que obteve sucesso com a direção de Mulhall até 1894. Ele acompanhou o avanço urbano e econômico de Buenos Aires, defendendo vários projetos que alavancassem o capitalismo portenho. Em 1878, casou-se nesta cidade, com Marion McMurrough Mulhall, a revisora de seus livros. 
 Mulhall investiu em publicação de livros e dados estatísticos, especialmente, dirigidos para a economia. Em 1869 Mulhall publicou o primeiro livro em inglês impresso na Argentina, Handbook of the River Plate e em 1878 publicou The English in South America (Buenos Ayres, 8 vols). O campo da estatística atraiu o irlandês que publicou, em 1880, Progress of the World in Arts, Agriculture, Commerce, Manufactures, Instruction, Railways, and Public Wealth, since the beginning of the Nineteenth Century. No ano seguinte lançou The Balance Sheet of the World, 1870-80, e em 1883 Dictionary of Statistics, obra que se tornou referência para os estudos de Estatística.
Em sua passagem pela cidade do Rio Grande, no ano de 1871, o irlandês Michael Mulhall deixou várias observações que retratam a condição urbana da localidade, os arredores, o cemitério protestante, a viagem pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre etc. Ele sistematizou alguns dados sobre a importância do Porto do Rio Grande (atual Porto Velho) para o escoamento da produção da Província, ressaltando que Rio Grande e Porto Alegre eram os maiores centros econômicos da época. Acompanhou as obras de gás que estavam sendo realizadas pela São Pedro Brazilian Gás Company uma empresa inglesa que instalou canalização de gás no centro da cidade do Rio Grande. Estas obras eram fundamentais para a melhoria dos serviços urbanos e para construir uma visão de desenvolvimento tecnológico característico da expansão imperialista dos anos 1800.  
O conjunto de informações de sua estadia em Rio Grande e na Província do Rio Grande do Sul foi publicado em Londres com o título Rio Grande do Sul and its German Colonies (1873).  Uma edição que em português foi publicada em 1974: O Rio Grande do Sul e suas Colônias Alemãs. Porto Alegre: Editora Bels e Instituto Estadual do Livro.
A seguir, foi feita a transcrição de alguns trechos dos apontamentos de Michel Mulhall que trazem um panorama da economia e da urbanidade da cidade do Rio Grande no pós-Guerra do Paraguai.
“A receita e a despesa da província são pequenas, isto é, um dólar por pessoa ou um quarto do orçamento da província de Buenos Aires com igual população. A receita atinge cerca de 110.000 libras anualmente. A receita do Império derivada das Alfândegas de Rio Grande e Porto Alegre atinge, em média, 350.000 libras por ano, das quais 2/3 provêm de importação, 1/6 da exportação e o resto de outros impostos. O comércio com a Inglaterra, Hamburgo e os Estados Unidos é considerável: o valor da mercadoria importada é cerca de 600.000 libras, das quais 1/3 vem da Inglaterra, uma quantia quase igual de Hamburgo e o resto da França, Estados Unidos e Rio da Prata. O valor das exportações pode ser avaliado em 750.000 libras, das quais metade é para Inglaterra, 1/5 para os Estados Unidos e o resto para a França, Portugal e La Plata. Isto não inclui o tráfico costeiro com o Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e outros portos do Império, que é igual a todo o conjunto do comércio com o exterior. As exportações para os países estrangeiros consistem quase exclusivamente em couros. As exportações para outras partes do Brasil constituem, na sua maior parte, cereais das colônias alemãs. O porto de Rio Grande representa 2/3 de todo o comércio da província e o de Porto Alegre, 1/5; além desses, somente Uruguaiana é mercado de alguma magnitude. Porto Alegre e Rio Grande despacham anualmente um milhão de couros e de 30.000 a 40.000 toneladas de carne seca. Os relatórios da Província mostram que 1/3 desta quantidade vai para a Inglaterra, 1/10 para outras regiões do Brasil e 1/10 para cada um dos três países, Alemanha, Holanda e Portugal.
(...) O comércio principal (na cidade do Rio Grande) está nas mãos dos ingleses ou dos alemães, mas os comerciantes nativos também são inteligentes, ativos e bem educados, alguns falando inglês tão fluentemente como nós próprios, embora a maioria jamais tenha atravessado a barra de Rio Grande. (...) Há dois bancos na cidade, o da firma Mauá & Co., que tem filiais por todo o Brasil e no Rio da Prata, e o Londrino e Brasileiro, estabelecido há quatro anos. Há muitos capitalistas ricos e o dinheiro é considerado tão barato como no Rio da Prata; a moeda corrente é quase exclusivamente o papel-moeda, com um desconto de 10%, o que pode ser considerado como taxa fixa. O juro é de cerca de 12% ao ano, mas muitos preferem as construções como investimento.
A cidade melhorará muito, quando possuir suprimentos de água e gás. Os empreiteiros Upward e Illingworth, que chegaram aqui há quatro meses representando a São Pedro Brazilian Gás Company, tomaram as providências preliminares com a costumeira presteza de nossos conterrâneos e, hoje ao meio-dia, as ruas na frente da Alfândega foram abertas para serem colocados os primeiros canos. As autoridades municipais e de outras áreas estiveram presentes, além de um grande número de cidadãos, os editores dos jornais locais e os principais ingleses e alemães aqui residentes. O general Salustiano, o coronel Rangel e os oficiais do Estado-Maior da Guarnição vestiam o uniforme de gala, o 7º Batalhão da Linha formava a guarda de honra e a banda militar tocava árias nacionais.
Um subempreiteiro irlandês, com uma turma de trabalhadores, depositou os canos e o sr Upward, adiantando-se um pouco, apresentou um martelo de prata ao sr. Francisco José Cunha, prefeito da cidade, que após ter dado duas pancadas nos canos, declarou as obras devidamente iniciadas. O sr. Upward dirigiu-se ao prefeito, em inglês, nos seguintes termos: ‘Muito respeitável prefeito e conselheiros da cidade de Rio Grande, dignos representantes desta próspera população, venho em nome da São Pedro Brazilian Company congratular-me convosco nesta feliz ocasião em que são lançados a terra os primeiros canos destinados à iluminação a gás de vossa cidade. Confio que muito em breve vossas ruas, praças e edifícios estarão iluminados e que este grande melhoramento será, como tem sido em toda parte, o precursor de outros meios de conforto e progresso que assegurarão a prosperidade e o adiantamento de Rio Grande. Os diretores não pouparão esforços neste particular, e contam com a decidida assistência do Governo Brasileiro”. O prefeito respondeu: ‘Ilustre senhor Upward,  saúdo-vos como o mais distinguido engenheiro da São Pedro Gás Company. O Conselho da cidade aceita com prazer vossa solicitação de auxílio na inauguração destas obras, que serão realizadas sob sua hábil direção, e todos os meus concidadãos alegram-se comigo ante a perspectiva de tão grande melhoramento com a iluminação a gás de nossa cidade. Que a Providência Divina proteja a Companhia e derrame suas melhores bênçãos sobre esta cidade!’.  Aclamações de ‘Viva D. Pedro!’, ‘Viva o Brasil’, ‘Viva a Companhia Inglesa’ etc, cortaram o ar, junto com foguetes e acordes de música marcial, enquanto a reunião se dissolvia. Alguns ingleses observaram que era extremamente cômico ver tantos guarda-chuvas num dia de sol tão bonito; mas o calor já é suficiente para justificar o uso de tais abrigos.
À tarde o sr. Upward embarcou para o Rio de Janeiro no Camões, a caminho da Europa e foi levado a bordo pelos cidadãos mais importantes da cidade, o cônsul Callendar e outros. Tive a ocasião de conhecer o cônsul, que é muito estimado pelos nativos e pela maioria dos residentes estrangeiros. A cidade de Rio Grande tem poucas atrações para um visitante despreocupado, mas é o principal empório comercial da região. Disseram-me que Porto Alegre, há 20 horas ou 180 milhas pela lagoa, é um paraíso terrestre no centro do mais aprazível cenário; tem mais população que esta cidade e é a residência das principais autoridades, bem como de inúmeros comerciantes alemães. Antes de encerrar as minhas notas sobre Rio Grande, gostaria de observar que o lugar é de saúde proverbial. Domingo passado visitei o cemitério dos ingleses e dos nativos e, por acaso, encontrei o escrivão da cidade, o sr. Sá, um cavalheiro polido que fala com perfeição o inglês e me garantiu que muitas vezes se passam um ou dois dias sem nenhum enterro, embora a média de mortalidade para uma população de 17.000 habitantes devesse ser de cerca de 12 por semana. Os únicos nomes ingleses que encontrei foram o do sr. Messiter, que faleceu em 1860 com a idade de 68 anos, e o do sr. Wm. M’Crae, falecido em 1862 com 39 anos. Ambos os cemitérios são muito bem cuidados.
O lado da cidade que dá para o interior é protegido por uma forte muralha com bastiões e meia-luas cortadas por dois portões, mas em alguns lugares a areia subiu até o nível do parapeito. Guaraxains cavaram tocas na areia e ali vivem. Voltando do cemitério, passa-se por um quartel de 300 cavalarianos e pelo Hospital da Beneficência Portuguesa. O Hospital de Caridade ou hospital da cidade é uma estrutura maciça à beira d’água, sobre que já falei. Há três escolas públicas e três particulares, mas muitos mandam seus filhos para serem educados no Rio de Janeiro ou em outros lugares.”

Explorers in the New World, Longmans Green and C.O. 






Centro de Rio Grande em 1870. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 


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