A
presença de comerciantes ingleses em Rio Grande remonta ao século XVIII e nas
duas primeiras décadas do século XX foi registrada nos escritos de John Luccock
e Auguste Saint-Hilaire. O Porto do Rio Grande será o fator de atração para o
desenvolvimento do comércio de exportação e importação que mobilizou o
interesse inglês. Em 1801 foi criado o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, ampliando
os laços entre os comerciantes destes países. Entre os irlandeses que estiveram
em Rio Grande, Michel George Mulhall deixou registros de sua viagem.
Mulhall nasceu em Dublin em 1836 e faleceu na mesma
cidade em 1900. Em 1858, com apenas 22 anos, buscou o comércio na América do
Sul fundando, em 1861, o jornal Buenos Ayres Standard. Este foi o
primeiro periódico diário em inglês da América do Sul, num empreendimento
jornalístico que obteve sucesso com a direção de Mulhall até 1894. Ele
acompanhou o avanço urbano e econômico de Buenos Aires, defendendo vários
projetos que alavancassem o capitalismo portenho. Em 1878, casou-se nesta
cidade, com Marion McMurrough Mulhall, a revisora de seus livros.
Em sua passagem pela cidade do Rio Grande, no
ano de 1871, o irlandês Michael Mulhall deixou várias observações que retratam
a condição urbana da localidade, os arredores, o cemitério protestante, a
viagem pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre etc. Ele sistematizou alguns dados
sobre a importância do Porto do Rio Grande (atual Porto Velho) para o
escoamento da produção da Província, ressaltando que Rio Grande e Porto Alegre
eram os maiores centros econômicos da época. Acompanhou as obras de gás que
estavam sendo realizadas pela São Pedro Brazilian Gás Company uma empresa inglesa que instalou canalização
de gás no centro da cidade do Rio Grande. Estas obras eram fundamentais para a
melhoria dos serviços urbanos e para construir uma visão de desenvolvimento
tecnológico característico da expansão imperialista dos anos 1800.
O conjunto de
informações de sua estadia em Rio Grande e na Província do Rio Grande do Sul foi
publicado em Londres com o título Rio Grande do Sul and its German
Colonies (1873). Uma
edição que em português foi publicada em 1974: O Rio Grande do Sul e suas Colônias Alemãs. Porto Alegre: Editora
Bels e Instituto Estadual do Livro.
A seguir, foi feita a transcrição de alguns
trechos dos apontamentos de Michel Mulhall que trazem um panorama da economia e
da urbanidade da cidade do Rio Grande no pós-Guerra do Paraguai.
“A receita e a despesa da província são
pequenas, isto é, um dólar por pessoa ou um quarto do orçamento da província de
Buenos Aires com igual população. A receita atinge cerca de 110.000 libras
anualmente. A receita do Império derivada das Alfândegas de Rio Grande e Porto
Alegre atinge, em média, 350.000 libras por ano, das quais 2/3 provêm de
importação, 1/6 da exportação e o resto de outros impostos. O comércio com a
Inglaterra, Hamburgo e os Estados Unidos é considerável: o valor da mercadoria
importada é cerca de 600.000 libras, das quais 1/3 vem da Inglaterra, uma
quantia quase igual de Hamburgo e o resto da França, Estados Unidos e Rio da
Prata. O valor das exportações pode ser avaliado em 750.000 libras, das quais
metade é para Inglaterra, 1/5 para os Estados Unidos e o resto para a França,
Portugal e La Plata. Isto não inclui o tráfico costeiro com o Rio de Janeiro,
Pernambuco, Bahia e outros portos do Império, que é igual a todo o conjunto do
comércio com o exterior. As exportações para os países estrangeiros consistem
quase exclusivamente em couros. As exportações para outras partes do Brasil
constituem, na sua maior parte, cereais das colônias alemãs. O porto de Rio
Grande representa 2/3 de todo o comércio da província e o de Porto Alegre, 1/5;
além desses, somente Uruguaiana é mercado de alguma magnitude. Porto Alegre e
Rio Grande despacham anualmente um milhão de couros e de 30.000 a 40.000
toneladas de carne seca. Os relatórios da Província mostram que 1/3 desta
quantidade vai para a Inglaterra, 1/10 para outras regiões do Brasil e 1/10
para cada um dos três países, Alemanha, Holanda e Portugal.
(...) O comércio principal (na cidade do Rio
Grande) está nas mãos dos ingleses ou dos alemães, mas os comerciantes nativos
também são inteligentes, ativos e bem educados, alguns falando inglês tão
fluentemente como nós próprios, embora a maioria jamais tenha atravessado a
barra de Rio Grande. (...) Há dois bancos na cidade, o da firma Mauá & Co.,
que tem filiais por todo o Brasil e no Rio da Prata, e o Londrino e Brasileiro,
estabelecido há quatro anos. Há muitos capitalistas ricos e o dinheiro é
considerado tão barato como no Rio da Prata; a moeda corrente é quase
exclusivamente o papel-moeda, com um desconto de 10%, o que pode ser
considerado como taxa fixa. O juro é de cerca de 12% ao ano, mas muitos
preferem as construções como investimento.
A cidade melhorará muito, quando possuir
suprimentos de água e gás. Os empreiteiros Upward e Illingworth, que chegaram
aqui há quatro meses representando a São Pedro Brazilian Gás Company,
tomaram as providências preliminares com a costumeira presteza de nossos
conterrâneos e, hoje ao meio-dia, as ruas na frente da Alfândega foram abertas
para serem colocados os primeiros canos. As autoridades municipais e de outras
áreas estiveram presentes, além de um grande número de cidadãos, os editores
dos jornais locais e os principais ingleses e alemães aqui residentes. O
general Salustiano, o coronel Rangel e os oficiais do Estado-Maior da Guarnição
vestiam o uniforme de gala, o 7º Batalhão da Linha formava a guarda de honra e
a banda militar tocava árias nacionais.
Um subempreiteiro irlandês, com uma turma de
trabalhadores, depositou os canos e o sr Upward, adiantando-se um pouco,
apresentou um martelo de prata ao sr. Francisco José Cunha, prefeito da cidade,
que após ter dado duas pancadas nos canos, declarou as obras devidamente
iniciadas. O sr. Upward dirigiu-se ao prefeito, em inglês, nos seguintes
termos: ‘Muito respeitável prefeito e conselheiros da cidade de Rio Grande,
dignos representantes desta próspera população, venho em nome da São Pedro
Brazilian Company congratular-me convosco nesta feliz ocasião em que são
lançados a terra os primeiros canos destinados à iluminação a gás de vossa
cidade. Confio que muito em breve vossas ruas, praças e edifícios estarão
iluminados e que este grande melhoramento será, como tem sido em toda parte, o
precursor de outros meios de conforto e progresso que assegurarão a
prosperidade e o adiantamento de Rio Grande. Os diretores não pouparão esforços
neste particular, e contam com a decidida assistência do Governo Brasileiro”. O
prefeito respondeu: ‘Ilustre senhor Upward,
saúdo-vos como o mais distinguido engenheiro da São Pedro Gás Company.
O Conselho da cidade aceita com prazer vossa solicitação de auxílio na
inauguração destas obras, que serão realizadas sob sua hábil direção, e todos
os meus concidadãos alegram-se comigo ante a perspectiva de tão grande
melhoramento com a iluminação a gás de nossa cidade. Que a Providência Divina proteja
a Companhia e derrame suas melhores bênçãos sobre esta cidade!’. Aclamações de ‘Viva D. Pedro!’, ‘Viva o
Brasil’, ‘Viva a Companhia Inglesa’ etc, cortaram o ar, junto com foguetes e
acordes de música marcial, enquanto a reunião se dissolvia. Alguns ingleses
observaram que era extremamente cômico ver tantos guarda-chuvas num dia de sol
tão bonito; mas o calor já é suficiente para justificar o uso de tais abrigos.
À tarde o sr. Upward embarcou para o Rio de
Janeiro no Camões, a caminho da Europa e foi levado a bordo pelos
cidadãos mais importantes da cidade, o cônsul Callendar e outros. Tive a
ocasião de conhecer o cônsul, que é muito estimado pelos nativos e pela maioria
dos residentes estrangeiros. A cidade de Rio Grande tem poucas atrações para um
visitante despreocupado, mas é o principal empório comercial da região.
Disseram-me que Porto Alegre, há 20 horas ou 180 milhas pela lagoa, é um
paraíso terrestre no centro do mais aprazível cenário; tem mais população que
esta cidade e é a residência das principais autoridades, bem como de inúmeros
comerciantes alemães. Antes de encerrar as minhas notas sobre Rio Grande,
gostaria de observar que o lugar é de saúde proverbial. Domingo passado visitei
o cemitério dos ingleses e dos nativos e, por acaso, encontrei o escrivão da
cidade, o sr. Sá, um cavalheiro polido que fala com perfeição o inglês e me
garantiu que muitas vezes se passam um ou dois dias sem nenhum enterro, embora
a média de mortalidade para uma população de 17.000 habitantes devesse ser de
cerca de 12 por semana. Os únicos nomes ingleses que encontrei foram o do sr.
Messiter, que faleceu em 1860 com a idade de 68 anos, e o do sr. Wm. M’Crae,
falecido em 1862 com 39 anos. Ambos os cemitérios são muito bem cuidados.
O lado da cidade que dá para o interior é
protegido por uma forte muralha com bastiões e meia-luas cortadas por dois
portões, mas em alguns lugares a areia subiu até o nível do parapeito.
Guaraxains cavaram tocas na areia e ali vivem. Voltando do cemitério, passa-se
por um quartel de 300 cavalarianos e pelo Hospital da Beneficência Portuguesa.
O Hospital de Caridade ou hospital da cidade é uma estrutura maciça à beira
d’água, sobre que já falei. Há três escolas públicas e três particulares, mas
muitos mandam seus filhos para serem educados no Rio de Janeiro ou em outros
lugares.”
Explorers in the New World, Longmans Green and C.O. |
Centro de Rio Grande em 1870. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. |
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