“O Brasil não é isso. O Brasil, senhores,
sois vós. O Brasil é esta assembleia. O Brasil é este comício imenso de almas
livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não
são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública.
Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais. Não
são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não
são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os
publicistas de aluguel. Não são os estadistas de impostura. Não são os
diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a
multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se
vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a
coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das
vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de
força e de luz para a renovação de nossas energias. É o povo, num desses
movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade”. Ruy Barbosa,
discurso pronunciado no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 20 de março de 1919.
Ruy
Barbosa, um dos grandes intelectuais brasileiros do século XX, deixou um legado
de discursos críticos que buscavam analisar o meio político brasileiro de seu
tempo. Uma de suas famosas afirmações foi a de que chegaria o dia em que, no
Brasil, as pessoas teriam vergonha de serem honestas!
Um dos maiores desafios de uma sociedade é
sobreviver eticamente estando atolado na corrupção numa longa duração temporal.
Quando Ruy Barbosa refere-se aos ‘comensais do erário, as ratazanas do Tesouro
e os corruptores da República’, está se referindo a corrupção que é a moeda
corrente da política em seu tempo; quando enaltece a multidão que não adula e
nem se vende, ele acredita na utopia de que a honestidade e a decência em
sociedade ainda é possível. É claro que o preço a pagar ao falar com toda
veracidade foi, de certa forma, o seu suicídio político.
Desde
o sistema colonial e durante o Império uma distorção começou a se exercer
quando o país da pessoalidade passou a realizar um exercício de cinco séculos.
Os vínculos pessoais imperam sobre os impessoais, o é ‘dando que se recebe’ (subordinação
e apoio político/voto em troca de promessa ou ganho pessoal). A tradicional
camada dirigente, fundada na aristocracia e nos títulos de nobreza, busca
garantir uma perpetuidade hereditária, transmitindo o poder aos filhos e
parentela. O patronato político brasileiro tem suas origens ibéricas e o
estamento burocrático criado quando da colonização brasileira, conforme análise
de Raimundo Faoro em ‘Os Donos do Poder’, atravessou toda a história política
brasileira. Seja na Monarquia ou no período republicano (com orientações
liberais, populistas ou nacionalistas) os governos tiveram que conviver com
este aparelho de Estado que recebeu e reproduziu esta herança secular.
Um dos piores monstros que um país pode
conviver é a ausência de fronteiras definidas entre o público e o privado. O
erário público visto como o manancial que alimenta hordas de aproveitadores que
superfaturam obras; indicam apadrinhados para a distribuição de cargos e se
fartam nos recursos públicos até a exaustão. Resultado deste processo
normalmente é uma prestação de serviço público criticado pela população ou
contratos de concessão questionáveis em sua qualidade.
Infelizmente, a corrupção é um tentáculo que não
é restrito aos políticos pois faz parte das práticas cotidianas. A legião de
sonegadores e corruptores; os parasitas que cavam aposentadorias no setor
público ou privado para viverem do ócio e da vagabundagem; as mulheres (que no
fundo são uma aberração para a verdadeira feminilidade que é constituída por mulheres
trabalhadoras, seja no espaço da casa ou no espaço público) que fazem filhos
para viverem da renda alheia no anseio de capitalização e ócio; o favorecimento
nepótico e emocional; o favorecimento por amizades e pessoalidade a fim de
ocupar cargos públicos e criar um núcleo de auto-apoio e reprodução de um
grupo; os especuladores imobiliários que vivem exaustivamente da opressão e da
vilania exercida sobre os trabalhadores e comerciantes; o pseudo estudante, que
recorre a todo de tipo de artimanha para obter aprovação sem esforço; centenas
de exemplos podem ser dados para caracterizar os vampiros que vivem do alheio e
que corrompem o cotidiano.
Esta horda de parasitas se entranha e
corrompe o tecido social e as instituições, e especialmente, deixam o exemplo
de que somente com o recurso a malandragem é possível viver em sociedade. E a
banalização da corrupção, quando o projeto de futuro é tornar-se mais um destes
privilegiados, é um dos mais nefandos imaginários que uma sociedade pode
produzir. A projeção do futuro será apenas a reprodução de relações corruptas
no presente. E o interessante é que este discurso crítico já se faz presente nos
iluministas do século XVIII, os construtores da trilogia ‘liberdade, igualdade
e fraternidade’, quando repudiavam a sociedade dos privilégios e das cartas
marcadas do Antigo Regime na Europa. O Brasil ainda não edificou sequer a
modernidade iluminista!
O Estado brasileiro
enquanto um grande guarda chuva que drena da população mais de um trilhão e
meio de reais por ano – fruto oriundo de uma das maiores cargas tributárias do mundo-, pode
ser lapidado e construído pelo clamor das ruas. Este processo que deve “ser
pacífico” e não destruidor do bem público e privado, poderá inverter a lógica
de que o eleitor é o prisioneiro e evidenciar, que o voto dos eleitores, é que deixa
claro quem são os verdadeiros dependentes do sistema atual: a classe política.
Aprimorar o processo democrático e a construção de um Estado brasileiro fundado
em demandas racionais e menos pessoais, será um grandioso avanço para superar a
lógica de uma estrutura mental de cinco séculos. O cansaço de viver na barbárie
impõe a busca desta utopia.
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