Quando
da chegada de Silva Paes, em fevereiro de 1737, com o objetivo de iniciar a ocupação militar e promover o
povoamento da futura cidade do Rio Grande, navegar pela barra representava um
momento crítico do filme épico da fundação luso-brasileira no sul do Brasil. No
historiador Simão Pereira de Sá, contemporâneo de Silva Paes, o relato desta
chegada apresenta contornos dramáticos que persistiram, em outros autores, por
quase dois séculos: “Antecipados desta sorte os progressos do Rio Grande chegou
o Brigadeiro José da Silva Paes com 420 homens entre oficiais e soldados
tirados das tropas auxiliares do Rio de Janeiro, Minas, Bahia e Pernambuco
(...) mas, receando o Brigadeiro o naufrágio das embarcações no perigo da
Barra, entrou a segurar o ingresso com exame de piloto, cautelas de Capitão
(...) Averiguada finalmente a perigosa e desconhecida Barra que tem três diferentes entradas, uma ao sul
e outras ao norte e sudeste”. .
O próprio Silva Paes, em carta de 12 de abril
de 1737, desabafou, após cruzar com sucesso pelo trajeto entre cômoros de
areia, que havia tirado à barra do Rio Grande de São Pedro “a máscara que até
aqui metia tanto medo”. Errôneo otimismo...
OS
ESTRANGEIROS E A BARRA
Aos
viajantes estrangeiros que conheceram a cidade e publicaram livros sobre o Rio
Grande do Sul no século passado, a travessia da barra constituiu um momento de
ansiedade antes do desembarque na cidade. Registros da passagem pela “barra
diabólica” e suas dificuldades são um lugar comum nos escritos que edificam um
imaginário de proeminência da natureza sobre a civilização.
O
comerciante inglês John Luccock, em 1809, assim descreve a passagem: “Muito
antes de avistarmos qualquer sinal que servisse para orientar nossa rota,
vimo-nos em água rasa e cercados de bancos de areia. O capitão tendo-se postado
no topo do mastro, avistou esses baixos e os canais dentre eles, com mais
nitidez do que se estivesse sobre o tombadilho, dando-nos instruções sobre a
maneira de governar. Afinal surgiu um bote que veio ao nosso encontro, com um
piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados, nos prestou idêntico
serviço. Esses sinais não só indicam a rota que o navio deve seguir, como, às
vezes, aconselham a que deite âncora onde está, ou mesmo a que retorne ao mar
alto, quando não há água bastante na barra para que ele possa transpor”.
O
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1820, relata as dificuldades
para a navegação e as providências estabelecidas para evitar naufrágios na
barra do Rio Grande, conforme ele, várias precauções foram tomadas: “Um homem
continuamente encarregado de sondar a barra por meio de sinais informa as
embarcações se a quantidade de água, que varia sem cessar, lhe permite a
entrada; estas também fazem sinais indicativos sobre o calado de suas
embarcações; enfim, quando saem ou entram, o prático da barra, num pequeno
barco denominado de catraia, vai mostrando, por meio de uma bandeira, que ele
inclina de um lado ou de outro o caminho a seguir.” Saint-Hilaire constata que
a barra “não fica sempre no mesmo lugar”, exigindo um acompanhamento constante
desta dinâmica. Segundo o viajante francês “nada se iguala a tristeza desses
lugares. De um lado, o bramir do oceano; e do outro, o rio (...) destroços de
embarcações semi-enterradas na areia recordam pungentes desgraças e nossa almas
se enche, pouco a pouco, de melancolia e terror”.
O
médico alemão Robert Avé-Lallemant, esteve na cidade em fevereiro de 1858, e o
fluxo de deposição de sedimentos persistia um problema aparentemente insolúvel.
Segundo ele, “a barra do Rio Grande é, sem dúvida, uma das mais desagradáveis e
mais perigosas que existem e poucos se encontrarão que, em proporção com os
navios entrados, tenha havido tantos naufrágios como aqui. Fora, no mar,
estendem-se os baixios e, em frente da
barra, um banco de areia; ao norte ou aos sul desta, se acham as passagens
variáveis, aliás, de local e de profundidade; por vezes, ambas as passagens
estão más, sendo necessárias exploração e observação de áreas para permitir a
entrada do navio ou adverti-lo de que não pode entrar. Vêem-se infelizmente
restos e destroços de navios naufragados que se elevam sobre os baixios”.
Os
viajantes ressaltam as dificuldades que a barra oferecia para a navegação.
Inclusive a profundidade tornava-se cada vez menor, inviabilizando a entrada de
navios com maior calado. Enquanto no final do século 18 a profundidade chegava
a 4,40 metros, ao longo do século 19 foi diminuindo até chegar em 2,75 metros
em 1883.
A BARRA E OS MOLHES
Vários engenheiros analisaram a
situação da barra na segunda metade do século passado, esbarrando os projetos
propostos em dificuldades técnicas e financeiras. Em 1875, o engenheiro inglês
Sir Clarke Hawkshau, emitiu um relatório em que propõe a construção de dois
quebra-mares. Apesar de pessimista em sua viabilidade técnica, a idéia de
Hawkshau foi utilizada em 1883 pelo engenheiro Honório Bicalho que previu a
construção do molhe leste e molhe oeste. O engenheiro holandês Pieter Caland
fez algumas alterações no projeto de Bicalho. Em concorrência pública, a
companhia francesa Societé Anonyme
Franco-Brésilienne de Travaux Publics assumiu a realização da obra (1890),
que por problemas financeiros não foi iniciada. A lenta decisão em retomar o
projeto pelo governo republicano brasileiro atrasaram o andamento. O engenheiro
Corthell fundou uma companhia mantida por capitalistas norte-americanos chamada
Port of Rio Grande do Sul que também
não dispos dos recursos para a obra. O mesmo engenheiro, em 1908, conseguiu o
capital necessário para o início dos trabalhos com investidores franceses
criando a Compagnie Française du Port de
Rio Grande do Sul. Finalmente, com um projeto de construção de um porto
marítimo, de manutenção de uma profundidade de 10 metros ao longo do canal e
edificação de dois molhes (com cerca de 4 km de extensão e 800 metros de
largura) para garantir a manutenção de um calado seguro para as embarcações,
iniciavam às atividades preliminares para a grande obra que custou cerca de 18
mil contos de réis-ouro.
Os problemas para construção da obra
também estavam ligados a falta de matéria-prima em Rio Grande. Cerca de 3,4
milhões de toneladas de rochas foram utilizadas exigindo um grande esforço para
exploração de duas pedreiras no interior de Pelotas, e o deslocamento via férrea
(linhas férreas foram construídas especialmente para o escoamento) e via
marítima/terrestre num espaço viável para que as obras não parassem. Um
gigantesco guindaste, o Titan entrou em
funcionamento no molhe leste em julho de 1911. Em novembro do mesmo ano, outro
Titan passou a funcionar no molhe oeste. A construção teve início em outubro de
1911 sendo inaugurada em 1º de março de 1915, quando o navio-escola Benjamin
Constant, com um calado de 6,35 metros, cruzou a barra e atracou no Porto Novo.
O
longo trajeto de reivindicações e desafios para a população local resultou numa
das mais importantes obras de engenharia mundial do início do século, onde
trabalharam mais de quatro mil homens. A partir de 1915, Rio Grande passou com
maior intensidade a dinamizar-se com o comércio marítimo internacional. A barra
diabólica cedia frente ao crescente otimismo burguês do início do século,
ligado a crença do domínio da tecnologia sobre a natureza.
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