O cólera, uma doença infecciosa aguda,
caracterizada por diarréia, prostração e cãibras, surgiu no Oriente,
alastrou-se pela Europa, cruzou o Atlântico e chegou ao Rio de Janeiro e portos
do nordeste no ano de 1855. Em novembro deste ano, os primeiros casos surgem na
Província do Rio Grande de São Pedro e são registrados em Pelotas, quando,
vindos do Rio de Janeiro a bordo do paquete Imperatriz, passageiros
contaminados pelo vibrião desembarcaram no porto do Rio Grande. Seguindo o
curso de navegação pela Lagoa dos Patos e estuário do Guaíba, a doença
disseminou-se pela Província.
Os
jornais da época cederam um grande espaço às notícias sobre a evolução da
doença no Brasil, demonstrando apreensão frente ao alastramento da epidemia.
Rio Grande era considerada, assim como as cidades portuárias, um fácil centro
de proliferação da doença. O Diário do
Rio Grande de 25 de outubro de 1855, num comunicado, indica o clima de
apreensão reinante. “Cólera Morbus, eis a palavra que eletricamente sai duma
para outra boca e que fere todos os ouvidos de sorte a causar geral
consternação na massa do povo. Essa peste, que se limitava a ser horrível
furacão longe de nós, com terrorismo se norteia para o Brasil e sucessivamente,
atravessando o Pará e a Bahia, no Rio de Janeiro, inúmeras vítimas varrem de
cima para baixo da terra: e a ciência, apesar de se erguer em extensa, alta e
espessa muralha, se vê, em um outro ponto, escalada pela violência do mal que
nos amedronta”.
O
mesmo jornal no dia 28 de outubro publica um apedido com dados sobre a inspeção
de saúde para a Guarda Nacional, onde, entre 518 homens inscritos, 51
apresentavam alguma moléstia. O autor da matéria, afirmou que “não há clima
mais infectado que nesta cidade” projetando que mais de 1.200 pessoas sofriam
de alguma doença e concluindo: “Se por desgraça nossa, vier visitar a estas
plagas arenosas o infernal cólera, que número de doentes não haverá?”
A
cidade do Rio Grande apresentava, pelo censo de 1848, uma população de 10.152
habitantes. Em 1858, a população aumentou para 13.514 habitantes constituída de
2.087 escravos (15,4% do total). Quando da eclosão do cólera, a população era
de aproximadamente 12.000 habitantes e de 2.000 escravos (estimativas). Conforme
levantamento de óbitos realizado junto ao Bispado do Rio Grande, 153 escravos
morreram de cólera entre os dias 06 de dezembro de 1855 e 04 de abril de 1856,
sendo 105 (68,6%) do sexo masculino e 48 (31,3%) do sexo feminino. Nesta
projeção, 7,65% dos escravos da cidade morreram devido à doença. A estimativa
de vítimas para a Província, numa população de 280.000 habitantes foi de 4.000
(1,42% do total). Na cidade, chegou ha cerca de 500 vítimas (4,1% do total),
porém, dados precisos ainda não foram coletados para a população não escrava.
Porto Alegre apresentou a situação mais crítica, pois frente a uma população de
15.000 habitantes teve 1.405 mortos (9,3% do total).
Rio
Grande está aberta a chegada das epidemias através do porto. Neste sentido,
desde o seu surgimento na cidade no século 19, a imprensa denúncia o livre
acesso das embarcações ao espaço urbano. O jornal O Povo do dia 16 de
dezembro de 1855 destacou: "Meio ano havia se esgotado, quando apareceu
nesta cidade o cólera morbus, que já devastava o nosso irmão das províncias do
norte, e nós sabedores das inúmeras vítimas que eram por ele ceifadas,
permanecíamos de braços cruzados e impassíveis sem cuidarmos e nos preparar a
exemplo das províncias da Bahia e Rio de Janeiro para recebermos tão horrível
hóspede. Apenas se clamava contra o digno Provedor da Saúde, por que este, não
tendo recebido participação oficial, nem ordem expressa da presidência, não
estabelecia a quarentena nos navios procedentes de lugares afetados da
epidemia, julgando-se talvez que era isto o meio mais provável e seguro para
impedir que ela se desenvolve-se entre nós, no entanto que nenhuma providência
higiênica se tomava, de nenhuma medida sanitária se cuidava, nem se tratava de
estabelecer convenientemente por ordem da autoridades ou pela filantropia dos
habitantes abastados da cidade, enfermarias em que se tratassem as pessoas
pobres que fossem acometidas da peste”.
As precárias condições urbanas eram duramente
criticadas pelo mesmo jornal nesta mesma edição, descrevendo o seguinte
panorama da cidade que se confrontava com a epidemia: “A câmara municipal desta
cidade, desprezando as indicações higiênicas há serem empregadas como meio
preventivo contra a ação do cólera morbus, quando ele nos acometesse,
pecou gravemente e nada há que a possa isentar da indignação de que se acha
possuída a população desta cidade. A Câmara desprezou inteiramente, a idéia de
construção de um novo cemitério plano este desde muito tempo por ela mesmo
traçado. Ninguém que ignore, quão prejudicial nos é a inumação dos corpos que
falecem da peste, em um cemitério tão próximo da cidade e se continuasse à
persistência da câmara em não demarcar um lugar fora das trincheiras e
consentisse que os cadáveres fossem sepultados uns sobre os outros, como já se
praticava no cemitério antigo por falta de espaço, ver-nos íamos constantemente
infectados do cólera, pois que para o seu desenvolvimento bastavam os miasmas
que tão perto nos viessem. Ordenou que se abrissem valas de um ou dois palmos
de profundeza nos mesmos lugares em que permaneciam as imundícies, e que ali
fossem enterradas, julgando que era bastante isto para livrar a cidade das
exalações pútridas. O matadouro público vos bem sabeis que ainda existe no
mesmo estado. O boi que ali morto não precisa de outra prisão mais do que o
lodaçal em que fica atolado, para se conservar imóvel e pacífico a esperar a
morte. As barracas do mercado continuam a serem permitidas contra todas as
conveniências sanitárias porque basta encarar para a fachada de semelhantes albergues,
para reconhecer-se evidentemente que neles existem todas as condições
essenciais para por si só desenvolverem uma epidemia no lugar. O dique não foi
atulhado, e é um verdadeiro poço de lama e imundícies que nas marés baixas
ficam expostas ao calor do sol, e exalam um fétido bem desagradável”.
A
TECNOLOGIA E A PESTE
No
combate a doença, um meio de comunicação passou a fazer parte do cotidiano da
população rio-grandina. Administrado pela enfermaria dos coléricos, o telégrafo torna-se uma alternativa de
agilização do socorro às vítimas. O responsável pela inovação, em nível local,
é o Dr. Zalony que explicou o funcionamento do novo sistema: “A enfermaria dos
coléricos inaugurou um sistema de telegrafia para a maior prontidão da condução
dos enfermos e também para facilitar a cada um em particular, o chamamento de
qualquer médico ou sacerdote a sua casa”.(Diário
do Rio Grande, 22/12/1855). “Os moradores acudirão ao telégrafo vizinho de
sua moradia”, prossegue Zalony, “e um vigia acudirá ao sinal de socorro e
tomará as medidas necessárias”.
Na busca dos fatores que conduziram à
contaminação, remédios e matérias escritas por farmacêuticos vem à tona,
buscando orientar as pessoas e vender produtos. O restrito conhecimento do
universo microscópico induziu à especulação: “Desde já, pois, no receio de
sermos tocados pelo tufão da peste, lancemos mão de todos os meios aconselhados
pela ciência e um grande passo daremos para longe da violência do mal. (...) É
de fato e de demonstração, que muitas moléstias pestilentas tem a sua origem em
miasmas, e também é de fato e de demonstração, que esses danosos e virulentos
crepúsculos, são gerados em focos, tais como águas estagnadas e de mistura com
matérias orgânicas e imundícies dispersas em diferentes pontos de uma cidade ou
povoação, que em suspensão na atmosfera, deleteriamente se introduzem no
organismo.” (O Diário do Rio Grande,
25/10/1855).
O enfoque está ligado à contaminação pelo ar
e não pela água ou alimentos contaminados pelo vibrião colérico. As precárias
condições de higiene e a utilização de água contaminada são fatores que
catalisaram a proliferação da doença. Numa sociedade escravista formada por uma
considerável população cativa ou de negros libertos, a epidemia pôs fim a vida
de milhares de pessoas na Província e dezenas de milhares no restante do
Brasil. Em Rio Grande, os meses de dezembro de 1855 e janeiro de 1856 foram de
ruptura das atividades, de angústia e de dor. Afinal, o desconhecimento do
mecanismo de contaminação tornou a epidemia triunfante em seu caminho de ceifar
vidas de senhores e escravos. As apreensivas notícias da marcha devastadora do
cólera em outras Províncias, tornaram-se uma cruel realidade quando os casos
começaram a se multiplicar na cidade do Rio Grande, expondo a vulnerabilidade
do saber médico-higienista.
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