Porto do Rio Grande em 1908

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domingo, 6 de agosto de 2017

PATRIMONIALISMO

Que abordagens podemos utilizar para explicar a formação histórica brasileira? Centenas de livros já se debruçaram sobre esta questão que até o presente continua essencial. Podemos utilizar teorias econômicas, sociológicas, antropológicas, culturalistas, políticas, estruturalistas fundadas nas mentalidades etc. Uma metodologia explicativa que considero muito pertinente está ligada a uma visão de longa duração temporal e que pode ser visualizada na prática cotidiana: o patrimonialismo.
Na minha visão, a alma brasileira não vive sem isto! Neste sentido sempre digo que o Brasil é um país onde a modernidade ainda não se realizou no plano do imaginário! A tradição ibérica, ainda fortemente se expressa e a racionalização ou a razão instrumental – típica das sociedades capitalistas – aqui encontrou mecanismos para garantir sua incompletude.
Sempre aprendi familiarmente, que a honestidade é um princípio inalienável do comportamento. Não consigo me livrar desta maldição que foi transmitida em alguma ‘noite de lua’ e que acaba custando muito caro no convívio cotidiano. Viver no país do jeitinho, da malandragem, da pessoalidade, das formações de quadrilha, dos conchavos sórdidos para dividir o bem público ou privado entre os apadrinhados, são práticas sociais difundidas que continuam a me repugnar.
A pessoalidade, o nepotismo, o favorecimento partidário ou corporativo, são degenerações, porém, dominam o cenário sócio-político. E esta ‘cultura’ que tem passado por inúmeras gerações de brasileiros desde o descobrimento em 1500 recua ao nosso passado na Península Ibérica. A formação da Sociedade Brasileira remonta à bagagem recebida de Portugal cuja normatividade estava ligada a distribuição de títulos e cargos públicos aos vassalos e apadrinhados mantidos pelo Estado. Uma sociedade de ordens, privilegiada socialmente, que através do voto de fidelidade ao Rei recebia contrapartidas na distribuição da riqueza social. O Absolutismo era comum nos países europeus neste período, porém, em alguns, as mudanças vieram com as reformas religiosas ou com as revoluções burguesas. No caso do Brasil, nem a Revolução Francesa ainda foi realizada se compararmos com os princípios iluministas do século 18 cujo ideário tanto combateu o patrimonialismo...
         No Brasil através da concessão de capitanias hereditárias, sesmarias, títulos de nobreza, distribuição de cargos públicos, formou-se uma elite que construiu a prática administrativa de favorecimento pessoal e do próprio grupo familiar ampliado. O processo desencadeia o olhar do bem público como um prolongamento do bem privado. Muitos estudos já foram realizados sobre o tema. O intelectual alemão Max Weber dedicou parte de sua obra a desvelar as práticas patrimonialistas. Um dos maiores nomes da historiografia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda, ao criar o conceito de ‘homem cordial’, estava se referindo a prática patrimonial. Quando Fernando Henrique Cardoso elaborou a clássico da historiografia rio-grandense ‘Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional’, enfatizou longamente a presença do patrimonialismo nas relações políticas e sociais do Rio Grande do Sul dos séculos 18 e 19. 
         Oliveira Vianna na obra ‘Populações Meridionais do Brasil’ assim caracterizou o fenômeno: “O agrupamento local que conseguia ter ao seu lado o Governador dominava o município todo, passando a dispor de todos os meios de aliciamento, que o Centro – pelo seu preposto, o Governador – dispunha: policia civil; policia militar; guarda nacional; títulos de nobreza; nomeação para postos de administração locais (delegados, subdelegados, comandantes, inspetores, fiscais, etc.). Parece que o processo de agremiação e sincretismo dos nossos clãs se iniciou sobre este critério nativista. Eram expressões puramente bairristas e pessoais, não havendo nelas nenhum conteúdo de interesse publico ou ideológico. [...] Os partidos locais, como se vê, surgiam por meros motivos pessoais: – eram sempre as ambições, as vaidades e as preocupações de prestigio de família que decidiam da formação destas agremiações. Todos eles tinham um objetivo único: – procurar para si o apoio do Governador. Este era o centro de força na Província e, conseqüentemente, nas localidades...”.
Desta forma, na formação do Estado Brasileiro, a esfera doméstica dos grandes proprietários e nobres, definiu muito das relações institucionais fazendo com que as vontades particulares predominassem sobre as ordenações impessoais típicas de um Estado burocrático. A tradição de séculos santificou esta vontade pessoal como sendo um senso comum inquestionável. A administração passa a ser um exercício particular, onde os limites do público e do privado supostamente existem apenas formal/legalmente, mas não no campo da ética.
No patrimonialismo, os princípios da honestidade, impessoalidade e da transparência tornam-se motivo do deboche frente aqueles que manipulam o bem público e formam quadrilhas que garantam a reprodução de seus interesses. Até a democracia se torna um pano de fundo onde os interesses egocêntricos ou do grupo já marcaram e definiram todas as cartas. 
Um dos objetivos da análise histórica é explicar os processos ocorridos no passado, mas que são perceptíveis ou que fazem parte das práticas no presente. O patrimonialismo é uma expressão cultural de cinco séculos com fortes raízes que se projetam para o futuro. Neste sentido é deprimente fazer esta constatação, porém, é preciso saber em que terreno amanhã continuaremos a pisar.
Ofereço esta página reflexiva a todos os leitores que compartilham com estas ideias e que sabem como é difícil caminhar em meio a tantos patifes e manipuladores. E o patrimonialismo não se restringe a uma questão de Estado, mas difundiu-se nos espaços sociais. Um exemplo destes seres que pululam a nossa volta, pode estar inclusive em colegas que, sub-repticiamente, estão sempre a conchavar e corromper. Eles formam um epicentro de favorecimentos para os irmanados ou uma rede de intrigas para prejudicar os que não se deixam aliciar. Atualmente, inclusive, existem termos pomposos para definir os líderes mais destacados desta manipulação como sendo sociopatas. Mas o fato é que se estas ‘aberrações da natureza’ existem e se alimentam do social é porque as esferas de definição normativa das relações possibilitam a sua reprodução. O respaldo de impunidade que eles encontram nas instituições políticas ou jurídicas, por exemplo, na esfera do Direito Penal ou do Direito de Família, possibilita a sua atuação. Essa exemplificação é importante para enfatizar que os indivíduos não estão dissociados do todo, mas tem suas ações ligadas ao processo mais amplo. Este processo é que define o que se chama de Sociedade Brasileira é constituída por um conjunto multifacetado de influencias advindas do processo capitalista tupiniquim e mundial.  


   


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