Que abordagens podemos
utilizar para explicar a formação histórica brasileira? Centenas de livros já
se debruçaram sobre esta questão que até o presente continua essencial. Podemos
utilizar teorias econômicas, sociológicas, antropológicas, culturalistas,
políticas, estruturalistas fundadas nas mentalidades etc. Uma metodologia
explicativa que considero muito pertinente está ligada a uma visão de longa duração
temporal e que pode ser visualizada na prática cotidiana: o patrimonialismo.
Na minha visão, a alma
brasileira não vive sem isto! Neste sentido sempre digo que o Brasil é um país
onde a modernidade ainda não se realizou no plano do imaginário! A tradição
ibérica, ainda fortemente se expressa e a racionalização ou a razão
instrumental – típica das sociedades capitalistas – aqui encontrou mecanismos
para garantir sua incompletude.
Sempre aprendi
familiarmente, que a honestidade é um princípio inalienável do comportamento.
Não consigo me livrar desta maldição que foi transmitida em alguma ‘noite de
lua’ e que acaba custando muito caro no convívio cotidiano. Viver no país do
jeitinho, da malandragem, da pessoalidade, das formações de quadrilha, dos
conchavos sórdidos para dividir o bem público ou privado entre os apadrinhados,
são práticas sociais difundidas que continuam a me repugnar.
A pessoalidade, o
nepotismo, o favorecimento partidário ou corporativo, são degenerações, porém,
dominam o cenário sócio-político. E esta ‘cultura’ que tem passado por inúmeras
gerações de brasileiros desde o descobrimento em 1500 recua ao nosso passado na
Península Ibérica. A formação da Sociedade Brasileira remonta à bagagem
recebida de Portugal cuja normatividade estava ligada a distribuição de títulos
e cargos públicos aos vassalos e apadrinhados mantidos pelo Estado. Uma
sociedade de ordens, privilegiada socialmente, que através do voto de
fidelidade ao Rei recebia contrapartidas na distribuição da riqueza social. O
Absolutismo era comum nos países europeus neste período, porém, em alguns, as
mudanças vieram com as reformas religiosas ou com as revoluções burguesas. No
caso do Brasil, nem a Revolução Francesa ainda foi realizada se compararmos com
os princípios iluministas do século 18 cujo ideário tanto combateu o
patrimonialismo...
No Brasil através da concessão de
capitanias hereditárias, sesmarias, títulos de nobreza, distribuição de cargos
públicos, formou-se uma elite que construiu a prática administrativa de favorecimento
pessoal e do próprio grupo familiar ampliado. O processo desencadeia o olhar do
bem público como um prolongamento do bem privado. Muitos estudos já foram
realizados sobre o tema. O intelectual alemão Max Weber dedicou parte de sua
obra a desvelar as práticas patrimonialistas. Um dos maiores nomes da
historiografia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda, ao criar o conceito de
‘homem cordial’, estava se referindo a prática patrimonial. Quando Fernando
Henrique Cardoso elaborou a clássico da historiografia rio-grandense
‘Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional’, enfatizou longamente a
presença do patrimonialismo nas relações políticas e sociais do Rio Grande do
Sul dos séculos 18 e 19.
Oliveira Vianna na obra ‘Populações
Meridionais do Brasil’ assim caracterizou o fenômeno: “O agrupamento local que
conseguia ter ao seu lado o Governador dominava o município todo, passando a
dispor de todos os meios de aliciamento, que o Centro – pelo seu
preposto, o Governador – dispunha: policia civil; policia militar; guarda
nacional; títulos de nobreza; nomeação para postos de administração locais
(delegados, subdelegados, comandantes, inspetores, fiscais, etc.). Parece que o
processo de agremiação e sincretismo dos nossos clãs se iniciou sobre este critério
nativista. Eram expressões puramente bairristas e pessoais, não havendo nelas
nenhum conteúdo de interesse publico ou ideológico. [...] Os partidos locais,
como se vê, surgiam por meros motivos pessoais: – eram sempre as ambições, as
vaidades e as preocupações de prestigio de família que decidiam da formação
destas agremiações. Todos eles tinham um objetivo único: – procurar para si
o apoio do Governador. Este era o centro de força na Província e, conseqüentemente,
nas localidades...”.
Desta forma, na formação do Estado
Brasileiro, a esfera doméstica dos grandes proprietários e nobres, definiu
muito das relações institucionais fazendo com que as vontades particulares
predominassem sobre as ordenações impessoais típicas de um Estado burocrático.
A tradição de séculos santificou esta vontade pessoal como sendo um senso comum
inquestionável. A administração passa a ser um exercício particular, onde os
limites do público e do privado supostamente existem apenas formal/legalmente,
mas não no campo da ética.
No patrimonialismo, os princípios da
honestidade, impessoalidade e da transparência tornam-se motivo do deboche
frente aqueles que manipulam o bem público e formam quadrilhas que garantam a
reprodução de seus interesses. Até a democracia se torna um pano de fundo onde
os interesses egocêntricos ou do grupo já marcaram e definiram todas as
cartas.
Um dos objetivos da análise histórica é
explicar os processos ocorridos no passado, mas que são perceptíveis ou que
fazem parte das práticas no presente. O patrimonialismo é uma expressão
cultural de cinco séculos com fortes raízes que se projetam para o futuro.
Neste sentido é deprimente fazer esta constatação, porém, é preciso saber em
que terreno amanhã continuaremos a pisar.
Ofereço esta página reflexiva a todos os leitores
que compartilham com estas ideias e que sabem como é difícil caminhar em meio a
tantos patifes e manipuladores. E o patrimonialismo não se restringe a uma
questão de Estado, mas difundiu-se nos espaços sociais. Um exemplo destes seres
que pululam a nossa volta, pode estar inclusive em colegas que, sub-repticiamente,
estão sempre a conchavar e corromper. Eles formam um epicentro de
favorecimentos para os irmanados ou uma rede de intrigas para prejudicar os que
não se deixam aliciar. Atualmente, inclusive, existem termos pomposos para
definir os líderes mais destacados desta manipulação como sendo sociopatas. Mas
o fato é que se estas ‘aberrações da natureza’ existem e se alimentam do social
é porque as esferas de definição normativa das relações possibilitam a sua
reprodução. O respaldo de impunidade que eles encontram nas instituições
políticas ou jurídicas, por exemplo, na esfera do Direito Penal ou do Direito
de Família, possibilita a sua atuação. Essa exemplificação é importante para
enfatizar que os indivíduos não estão dissociados do todo, mas tem suas ações
ligadas ao processo mais amplo. Este processo é que define o que se chama de
Sociedade Brasileira é constituída por um conjunto multifacetado de influencias
advindas do processo capitalista tupiniquim e mundial.
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