O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire,
chegou à cidade do Rio Grande no dia 06 de agosto de 1820 nela permanecendo até
o dia 05 de setembro.
O
estilo irreverente utilizado por Saint-Hilaire ao descrever o cotidiano dos
habitantes, sua visão européia baseada no racionalismo científico e na
valorização da intelectualidade, a caracterização das pessoas e lugares sociais
ocupados, demonstram uma projeção de valores europeus dos primórdios do século
XIX. Nesse sentido, não foram somente os negros e os índios que sofreram
leituras depreciativas, mas as próprias elites são muitas vezes associadas à
falta de prepara intelectual, exatamente pelo restrito acesso ao universo
literário e científico.
Os
trechos de seu Diário (SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: ERUS/Martins Livreiro, 1987) referentes à Rio Grande, não fogem
da caracterização europocêntrica e fundada no Antigo Regime, válida para outras
cidades e regiões por ele visitada. Membro de uma família de nobres franceses,
o estilo irreverente e debochado está presente nas impressões que ficaram no
contato com a elite de Rio Grande.
Ao
chegar à cidade, Saint-Hilaire acompanhado do governador da Capitania Conde de
Figueira foram conduzidos à Igreja de São Pedro a qual se “achava enfeitada com
faixas de damasco vermelho, como nos maiores dias de festa e os degraus do
altar-mor completamente cheios de velas acesas”. O Te-Deum foi cantado e após
um “pregador subiu ao púlpito” tecendo elogios e “mil outras lisonjas vulgares
e mal expressadas” ao Conde. Durante esse tempo “ficara exposto o Santíssimo
Sacramento, mas a assistência nem por isso guardava respeito, portando-se quase
como se estivesse num mercado”.
Finalizada
a cerimônia religiosa, o padre conduziu os visitantes à casa do Tenente-General
Marques para um jantar, considerado excelente pelo nobre francês: “a mesa
estava coberta de uma quantidade de travessas, guisados e ensopados de toda
qualidade”. Num segundo momento foram servidos “assados, saladas e massas”.
Após o jantar “levantamo-nos da mesa e fizeram-nos passar a uma outra sala,
onde encontramos uma sobremesa magnífica, composta de uma variedade de bombons
e doces”. Depois da narração sobre a vulgaridade dos participantes da missa à
fartura do jantar seduziu parcialmente o naturalista. Mas só parcialmente, pois
o olhar ácido perseguiu sistematicamente os presentes. Tendo a reunião
prolongado-se pela madrugada e estando a maioria dos convidados embriagados,
Saint-Hilaire escreve que os portugueses e brasileiros “costumam beber o vinho
puro, e nos grandes banquetes, o nocivo hábito de erguer brindes excita-os a
tomarem em excesso”. Em decorrência desse hábito, no “day after” todos estavam
“tristes e fatigados”.
Em
outra atividade social, ocorrida no dia 13 de agosto, Saint-Hilaire foi a um
baile especialmente programado para ele e o Conde de Figueiras. Estes chegaram
ao local marcado às dezenove horas encontrando “cerca de sessenta senhoras
reunidas em um salão forrado de papel francês”. As senhoras estavam “todas
muito bem trajadas, usavam vestidos de seda branca, sapatos e meias de seda;
jovens e velhas traziam à cabeça descoberta, os cabelos armados por uma
travessa e enfeitados com flores artificiais”. As mulheres estavam “sentadas ao
redor do salão, em cadeiras colocadas uma diante das outras” enquanto os homens
“em muito menor número, conservavam-se de pé”. Com a presença de padres bem
trajados em suas batinas, um reduzido efetivo masculino com restrita empolgação
para dançar “valsas e inglesas”, o francês conclui que “nunca vi coisa tão
monótona”. Era preciso, “obrigar os homens a tirar as senhoras para dançar e, a
exceção do Conde, nenhum cavalheiro lhes dirigia a palavra”. Tanto a falta como
o excesso de um clima sensualmente mais efusivo, são fatores de crítica: “Uma
jovem dançou um solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude
deixar de lamentar que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de
todos”. Deixando-se tomar pelo tédio, o naturalista “francamente aborrecido”
retirou-se do baile logo que começou a ceia.
Depreende-se
que um abismo o convívio no universo da corte francesa e os olhares sobre as
tentativas de reprodução pelas elites locais de padrões culturais europeus, não
convenciam o olhar do nobre que transitava entre o tédio e o discurso
moralizador.
No
dia 16 de agosto, a realização de outro baile, na casa de um rico comerciante,
permitiu destacar elementos sobre a vida social da elite local. As senhoras
encontradas, foram na maior parte, às mesmas do evento anterior. A estética e
psique da mulher rio-grandina da época e delimitada na sutil observação do
cáustico naturalista: as mulheres “possuem olhos e cabelos negros, bela tez e
boa cor, mas, em geral, sem graça, sem atrativos, dados pela educação social
que as mulheres desta região não recebem”. Os motivos para a falta de atrativo
intelectual, estão relacionados à ausência de escolas e pensionatos para as
moças “criadas no meio dos escravos” e desde a “mais tenra idade, têm elas diante
de si o exemplo de todos os vícios, adquirindo, via de regra, o hábito do
orgulho e da baixeza”. A maioria delas “não sabem ler nem escrever: aprendem
algumas costuras, a recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo”.
As brasileiras, em geral “ignoram os encantos da sociedade e os prazeres da boa
conversação”, porém “nesta região as mulheres se ocultam menos do que as das
Capitanias do interior”. Nesse sentido, possuem “melhores noções de vida; são
desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita
distância das mulheres européias”.
Constatando
a inviabilidade de acesso à educação formal, Saint-Hilaire faz uma leitura da
mulher européia como o referencial feminino. Porém, para dividir o ônus da
ausência de civilidade das mulheres estão os homens da elite rio-grandina “europeus, nascidos em um meio inferior e que
não receberam educação alguma”. Desta forma,
o yin e o yang, encontram o equilíbrio na ausência de civilidade.
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