Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 5 de agosto de 2017

A RESTAURAÇÃO DO RIO GRANDE

As Memórias do Tenente-General Johann Heinrich Bohn constituem um precioso documento referente às operações militares para retomada portuguesa da Vila do Rio Grande de São Pedro, a qual estava em poder dos espanhóis desde 1763. A partir da Fronteira do Norte, ocorreu a arregimentação de grande efetivo militar para o século 18 num cenário de dificuldades para as ações bélicas e para o suprimento logístico das tropas. A reconquista da Vila ocorre no ano de 1776, com o início da invasão ocorrido no dia primeiro de abril.
Para efetivar a reconquista, foram destacados para a região da Restinga de São José do Norte, homens do Primeiro Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro, duas companhias do Batalhão do Continente, recentemente recrutados;  um destacamento de artilharia do Rio de Janeiro; um destacamento de Dragões do Rio Grande; num total de 1.097 homens. Com os efetivos dos regimentos de Bragança, Moura e Estremoz, constituem mais de quatro mil combatentes. As fortalezas edificadas no Norte, eram o Forte de São José com uma bateria de duas peças, fechada na parte traseira por paliçadas; o Forte do Patrão-Mor, a meia légua de distância, com igual armamento; a Fortaleza da Conceição, a cerca de meia légua do Patrão-Mor, com 5 peças de diferentes calibres e Fortaleza da Barra ou do Lagamar, com 6 peças.
Bohn afirmou que não perderia tempo em descrever estas fortalezas, pois bastava dizer que seu parapeitos podiam ter quatro pés de grossura, no máximo. “Nenhuma plataforma, por medíocre que seja. Todas as peças são retobalho, excetuadas as 4 que o Vice-Rei para lá enviou no ano passado. Há duas peças de 8, de bronze, toleráveis, mas sem berço de condições. A pólvora, está com grande risco de perder (...) Minha primeira saída se dirigiu para o mar. Porque desse lado me deviam vir os principais mantimentos que este Continente não pode fornecer. É humanamente impossível traze-los por terra para milhares de pessoas. Por um caminho muito cansativo, de duas boas léguas, chega-se à beira-mar. Lá há o Lagamar que a Providência parece ter feito, a fim de que pudéssemos ser socorridos, apesar de nos faltar o rio. Sumacas e pequenos barcos podem nela entrar e encontrar um bom abrigo. Este pequeno porto me pareceu da maior importância e o meu principal objetivo era assegurá-lo.” 
Ele faz referência às intempéries climáticas, afirmando que o “ar é são e o clima é bom. Mas a grande poeira sufoca e cega. Os ventos do Sul e Sudeste são intoleráveis, principalmente no inverno, quando sopram e fazem estragos, principalmente do lado do mar. Mas, eis aí, o bastante, para me recordar deste Continente”. A formação arenosa da restinga e o regime de ventos é um lugar comum nos documentos do século 18 e também nos viajantes do século 19.

A Retomada

Os espanhóis, na parte sul do canal, haviam construído um forte, perto da vila. Outro, junto da Mangueira, onde o terreno faz um ângulo, para defender a entrada da Mangueira e o Forte, chamado de Barra, do qual eles tinham ainda uma bateria baixa que atirava à flor da água. “O que eles tinham a mais, não pude ver então. Mas estes quatro estavam à vista. No dia seguinte a minha chegada, sendo aniversário do Rei Católico, os espanhóis deram salvas com seus fortes. Viu-se ainda no saco (da Mangueira) uma construção que parecia fortificada e vários outros barcos. Conforme as informações do governador, tudo aquilo está armado e as forças espanholas podiam chegar a 1.500 homens, tanto de Infantaria quanto de Dragões, de Artilharia e de mercenários, ou de tropas da América. Tudo comandado pelos Coronéis D. Miguel Texada e D. José de Molina. Refletindo sobre a importância do Lagamar, para a subsistência das tropas e sobre a proximidade dos espanhóis, sua posição e seus efetivos nessa Fronteira, determinei-me a estabelecer meu quartel nela ...”
O comandante enviou o Major Rafael Pinto Bandeira para o Rio Camaquã, onde este deveria estabelecer seu posto. Segundo Bohn, este oficial “tinha vindo ver-me conforme eu havia ordenado. Sua figura denotava um homem jovem e muito robusto. Sua fala, a de um homem de bom-senso que conhece uma grande parte deste Continente, que, antes, havia percorrido com seu pai. Seus atos falam muito de seu zelo pelo serviço do Rei. Ordenei-lhe que se mantivesse tranqüilo, sem que os espanhóis ouvissem falar dele, nem soubessem onde ele estava. De os espionar de todas as maneiras e me comunicar imediatamente as novidades”. 
         No mapa aqui reproduzido, podemos observar o movimento de navios na Barra com indicação de Terra dos Espanhóis (Rio Grande) e Terra dos Portugueses (São José do Norte), além da localização de diversas fortalezas e grande concentração de tropas.

O que restou da Vila

         O ataque naval desfechado contra posições ao longo da margem sul da barra no dia primeiro de abril de 1776 foi fulminante, provocando menos de uma centena de mortos e feridos entre os espanhóis e as forças atacantes, porém desencadeando uma retirada apressada das surpreendidas forças espanholas. Na fuga, o comandante Molina abandonou documentos e mapas que foram posteriormente enviados ao Rio de Janeiro. Bohn, destacou a eficiência de sua estratégia militar e o valor das tropas para retomada da Vila, o que superou suas melhores previsões: “A precipitação com que os espanhóis se foram é incrível. Para assegurar sua retirada, levaram consigo todos os animais, cavalos, carretas e homens e estragaram o caminho. Queimaram a pólvora. Encravaram as peças de artilharia. Arruinaram os belos reparos, com fogo ou machado. Espalharam os projéteis ou os jogaram à água, como também grande número de barris de  pólvora. Os espanhóis não cuidaram nem um pouco da manutenção das casas da vila, bastante fracas de construção (de tabique). Assim, estão quase todas ameaçadas de ruínas. Estão tão cheias de imundícies que é difícil acreditar-se que pessoas aí tinham morado. Sem excetuar a do Rei, onde ficou o Coronel Molina e que nela fazia bastante gastos. Mandei alugar, em proveito de Sua Majestade, estas casas desertas a nossos comerciantes e vendeiros, a fim de que as limpem e as mantenham. Estamos admirados em ver tão grande quantidade de ratos, que se tomaria por coelhos. Há carne de gado apodrecida nas casas e ruas, cujo fedor poderia causar a peste.”

Os capítulos da ocupação espanhola haviam acabado na história da então Vila do Rio Grande de São Pedro. As apreensões frente a um novo avanço castelhano permaneceram entre os habitantes e militares empenhados na reconstrução do centro urbano ao longo das décadas seguintes. Porém, o Prata continuaria a ser uma imagem presente no imaginário da sociedade rio-grandina frente à dialética dos avanços e recuos da diplomacia luso-espanhola.

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