As Memórias
do Tenente-General Johann Heinrich Bohn constituem um precioso documento
referente às operações militares para retomada portuguesa da Vila do Rio Grande
de São Pedro, a qual estava em poder dos espanhóis desde 1763. A partir da Fronteira
do Norte, ocorreu a arregimentação de grande efetivo militar para o século 18
num cenário de dificuldades para as ações bélicas e para o suprimento logístico
das tropas. A reconquista da Vila ocorre no ano de 1776, com o início da invasão
ocorrido no dia primeiro de abril.
Para efetivar a reconquista, foram destacados
para a região da Restinga de São José do Norte, homens do Primeiro Regimento de
Infantaria do Rio de Janeiro, duas companhias do Batalhão do Continente,
recentemente recrutados; um destacamento
de artilharia do Rio de Janeiro; um destacamento de Dragões do Rio Grande; num
total de 1.097 homens. Com os efetivos dos regimentos de Bragança, Moura e
Estremoz, constituem mais de quatro mil combatentes. As fortalezas edificadas
no Norte, eram o Forte de São José com uma bateria de duas peças, fechada na
parte traseira por paliçadas; o Forte do Patrão-Mor, a meia légua de distância,
com igual armamento; a Fortaleza da Conceição, a cerca de meia légua do
Patrão-Mor, com 5 peças de diferentes calibres e Fortaleza da Barra ou do
Lagamar, com 6 peças.
Bohn afirmou que não perderia tempo em
descrever estas fortalezas, pois bastava dizer que seu parapeitos podiam ter
quatro pés de grossura, no máximo. “Nenhuma plataforma, por medíocre que seja.
Todas as peças são retobalho, excetuadas as 4 que o Vice-Rei para lá enviou no
ano passado. Há duas peças de 8, de bronze, toleráveis, mas sem berço de
condições. A pólvora, está com grande risco de perder (...) Minha primeira
saída se dirigiu para o mar. Porque desse lado me deviam vir os principais
mantimentos que este Continente não pode fornecer. É humanamente impossível
traze-los por terra para milhares de pessoas. Por um caminho muito cansativo,
de duas boas léguas, chega-se à beira-mar. Lá há o Lagamar que a Providência
parece ter feito, a fim de que pudéssemos ser socorridos, apesar de nos faltar
o rio. Sumacas e pequenos barcos podem nela entrar e encontrar um bom abrigo.
Este pequeno porto me pareceu da maior importância e o meu principal objetivo era
assegurá-lo.”
Ele faz referência às intempéries climáticas,
afirmando que o “ar é são e o clima é bom. Mas a grande poeira sufoca e cega.
Os ventos do Sul e Sudeste são intoleráveis, principalmente no inverno, quando
sopram e fazem estragos, principalmente do lado do mar. Mas, eis aí, o
bastante, para me recordar deste Continente”. A formação arenosa da restinga e
o regime de ventos é um lugar comum nos documentos do século 18 e também nos
viajantes do século 19.
A Retomada
Os espanhóis, na parte sul do canal, haviam
construído um forte, perto da vila. Outro, junto da Mangueira, onde o terreno
faz um ângulo, para defender a entrada da Mangueira e o Forte, chamado de
Barra, do qual eles tinham ainda uma bateria baixa que atirava à flor da água.
“O que eles tinham a mais, não pude ver então. Mas estes quatro estavam à
vista. No dia seguinte a minha chegada, sendo aniversário do Rei Católico, os
espanhóis deram salvas com seus fortes. Viu-se ainda no saco (da Mangueira) uma
construção que parecia fortificada e vários outros barcos. Conforme as
informações do governador, tudo aquilo está armado e as forças espanholas
podiam chegar a 1.500 homens, tanto de Infantaria quanto de Dragões, de
Artilharia e de mercenários, ou de tropas da América. Tudo comandado pelos
Coronéis D. Miguel Texada e D. José de Molina. Refletindo sobre a importância
do Lagamar, para a subsistência das tropas e sobre a proximidade dos espanhóis,
sua posição e seus efetivos nessa Fronteira, determinei-me a estabelecer meu quartel
nela ...”
O comandante enviou o Major Rafael Pinto
Bandeira para o Rio Camaquã, onde este deveria estabelecer seu posto. Segundo
Bohn, este oficial “tinha vindo ver-me conforme eu havia ordenado. Sua figura
denotava um homem jovem e muito robusto. Sua fala, a de um homem de bom-senso
que conhece uma grande parte deste Continente, que, antes, havia percorrido com
seu pai. Seus atos falam muito de seu zelo pelo serviço do Rei. Ordenei-lhe que
se mantivesse tranqüilo, sem que os espanhóis ouvissem falar dele, nem
soubessem onde ele estava. De os espionar de todas as maneiras e me comunicar
imediatamente as novidades”.
No
mapa aqui reproduzido, podemos observar o movimento de navios na Barra com
indicação de Terra dos Espanhóis (Rio Grande) e Terra dos Portugueses (São José
do Norte), além da localização de diversas fortalezas e grande concentração de
tropas.
O que restou
da Vila
O
ataque naval desfechado contra posições ao longo da margem sul da barra no dia
primeiro de abril de 1776 foi fulminante, provocando menos de uma centena de
mortos e feridos entre os espanhóis e as forças atacantes, porém desencadeando
uma retirada apressada das surpreendidas forças espanholas. Na fuga, o
comandante Molina abandonou documentos e mapas que foram posteriormente
enviados ao Rio de Janeiro. Bohn, destacou a eficiência de sua estratégia
militar e o valor das tropas para retomada da Vila, o que superou suas melhores
previsões: “A precipitação com que os espanhóis se foram é incrível. Para
assegurar sua retirada, levaram consigo todos os animais, cavalos, carretas e
homens e estragaram o caminho. Queimaram a pólvora. Encravaram as peças de
artilharia. Arruinaram os belos reparos, com fogo ou machado. Espalharam os
projéteis ou os jogaram à água, como também grande número de barris de pólvora. Os espanhóis não cuidaram nem um
pouco da manutenção das casas da vila, bastante fracas de construção (de
tabique). Assim, estão quase todas ameaçadas de ruínas. Estão tão cheias de
imundícies que é difícil acreditar-se que pessoas aí tinham morado. Sem
excetuar a do Rei, onde ficou o Coronel Molina e que nela fazia bastante
gastos. Mandei alugar, em proveito de Sua Majestade, estas casas desertas a
nossos comerciantes e vendeiros, a fim de que as limpem e as mantenham. Estamos
admirados em ver tão grande quantidade de ratos, que se tomaria por coelhos. Há
carne de gado apodrecida nas casas e ruas, cujo fedor poderia causar a peste.”
Os capítulos da ocupação espanhola haviam
acabado na história da então Vila do Rio Grande de São Pedro. As apreensões
frente a um novo avanço castelhano permaneceram entre os habitantes e militares
empenhados na reconstrução do centro urbano ao longo das décadas seguintes.
Porém, o Prata continuaria a ser uma imagem presente no imaginário da sociedade
rio-grandina frente à dialética dos avanços e recuos da diplomacia
luso-espanhola.
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