O livro de Solismar Fraga Martins (Cidade
do Rio Grande: industrialização e urbanidade (1873-1990). Rio Grande:
Editora da FURG, 2006), destaca a presença dos comerciantes portugueses em Rio Grande. O papel
econômico e social foi contextualizado frente à expansão urbana e importância
portuária da cidade desde as primeiras décadas do século 19, trajetória que
iremos acompanhar a seguir. Martins utiliza como um dos vieses interpretativos
a obra do geógrafo Raphael Copstein.
PORTUGUESES EM RIO GRANDE
Solismar Martins afirma que as condições
fisiográficas, não totalmente favoráveis à cidade do Rio Grande, devido ao
constante assoreamento da entrada da barra, que dificultava a entrada das
embarcações, determinava a única opção para a província em termos de
ancoradouro para o transporte marítimo, exceção à concorrência do porto da
capital uruguaia. A inexistência de outro meio de transporte que ligasse o solo
gaúcho com o restante do país e que pudesse fazer concorrência com o transporte
marítimo também representou um fator significativo para o desenvolvimento
comercial da cidade.
Conforme Copstein, seria somente através do
porto que se daria a principal relação comercial entre o Rio Grande do Sul e o
restante do mundo, principalmente num período em que se importava quase tudo no
que se refere a produtos manufaturados. Em 1822 a rua da Praia, atual
Marechal Floriano, concentrava o maior número de casas comerciais e de
serviços. A dragagem e construção do primeiro porto da cidade foram concluídas
em 1823, junto ao aterro da Rua Nova das Flores, mais tarde rua da Boa Vista
(atual Riachuelo), paralela à rua da Praia. O aterro para a construção da Rua
Nova das Flores e do porto foi adquirido graças aos entulhos oriundos da
destruição do forte da Vila. Os comerciantes ajudaram nestas obras permitindo o
atracamento de embarcações de até 200 toneladas. As principais obras públicas
no período tiveram participação dos comerciantes, como a construção de um
teatro, a melhoria do Paço do Conselho, que estavam em andamento, e a
construção de um novo prédio da Alfândega.
A presença do capital comercial também está
relacionada à fundação em 1844 da Associação Comercial do Rio Grande, primeira
do RS. Essa associação teve participação efetiva em termos políticos para o
melhoramento da barra do Rio Grande no começo do século 20. A associação reunia não
somente os empresários comerciais, mas também criadores e posteriormente
industriais. O capital comercial representou a base para o acúmulo de capital e
o conseqüente desenvolvimento industrial da cidade do Rio Grande, embora esse
vínculo não seja exclusividade desta, já que as origens da indústria na
província no século 19 estão diretamente vinculadas ao capital comercial e a
mão-de-obra imigrante.
A cidade do Rio Grande era um ponto crucial
para os navios que se dirigiam à região platina. A cidade representava a única
opção de ancoradouro e abastecimento seguros para as embarcações ao sul de
Laguna em terras lusas e passagem obrigatória para as que se dirigiam ao Prata.
Portanto, as grandes companhias teatrais, ao se dirigirem para as cidades
platinas, muitas vezes faziam escala na cidade do Rio Grande, e na maioria dos
casos apresentavam-se na cidade. Apesar da importância comercial e financeira
que os imigrantes e comerciantes detinham no âmbito econômico dessas cidades, o
que incluía Porto Alegre, esse segmento não tinha os seus interesses
representados no plano da política da província, já que este era dominado pelos
pecuaristas da campanha. Dos imigrantes estrangeiros que passavam pela cidade,
muitos acabaram fixando residência. Isso proporcionou a existência de um número
expressivo de estrangeiros residentes na cidade no final do século 19.
Historicamente o burguês imigrante teve um papel decisivo no desenvolvimento
comercial e posteriormente industrial no Estado, em parte justificado por ter
trazido experiência profissional na gestão de alguma empresa. Em abril de 1888,
um recenseamento municipal registrou uma população de 20.277 habitantes, dos
quais 14.345 residiam na cidade. Os estrangeiros perfaziam 21,70% do total. Dos
estrangeiros, 2.790 moravam na cidade e 323 na cidade nova. A cidade ou cidade
antiga era limitada ao norte pelo Canal do Norte, ao sul pelo Saco da Mangueira
e a leste pelos banhos que seriam aterrados posteriormente no início do século
20 para abrigar o Porto Novo. A cidade velha ou simplesmente cidade representou
a constituição espacial da cidade do Rio Grande como centro político e
comercial, e somente no final do século 19 se efetivaria a ultrapassagem desses
limites.
Rio Grande recebeu imigrantes não nos moldes
de colônias agrícolas como foi comum no RS. A maioria dos imigrantes que
ficaram no Rio Grande estavam vinculados diretamente as atividades urbanas, principalmente
ao comércio e aos serviços. A colonização portuguesa foi a mais representativa
para a cidade, não na quantidade de investimentos, mas nas marcas deixadas na
cultura, na arquitetura, no comércio e na indústria. Conforme Copstein, a mais
numerosa e importante das colônias estrangeiras e a que maior influência
exerceu sobre a cidade do Rio Grande foi à portuguesa. No setor primário, além
da agricultura como a da Ilha dos Marinheiros, a pesca teve um lugar de
destaque. No comércio foi particularmente o setor de secos e molhados que
constituiu a área de preferência dos lusitanos. Os estabelecimentos varejistas,
até o advento dos supermercados, além de numerosos eram facilmente
reconhecíveis pelos nomes com que se os batizavam. Lembravam a terra ou ostentavam
denominações pitorescas. De forma semelhante se pode falar dos seus
restaurantes, cafés populares e padarias. Sua presença foi uma constante no
mercado público seja nas bancas de verduras ou nos quartos.
Um exemplo de transferência do capital comercial
para o capital industrial no Rio Grande é o do empresário português Albino da
Cunha Amaral. Ele fundou, juntamente com um sócio brasileiro, Francisco
Domingos Freitas, a Cunha, Freitas & Cia. Importadora e Exportadora, em 1876. A empresa revendia os
produtos para todo o território do RS e até mesmo para outras unidades do país,
o que incluía especialidades como vinhos franceses e sardinhas portuguesas.
Possuiu também representação no transporte lagunar. Posteriormente fundaria uma
empresa industrial moageira e no ramo de conservas. Outra empresa comercial
fundada por portugueses foi a José da Silva Fresteiro Cia., fundada em 1880.
Teve atuação por mais de 50 anos na cidade, exportava produtos agropastoris e
importava produtos diversificados de países diversos como Argentina, Estados
Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, Itália e Portugal. Também exportava couro
para a Europa e Estados Unidos. Em 1910 era a vez da casa importadora e
exportadora Rache Leite & Cia, formada pelo Barão Tavares Leite (português)
e por Frederico Rache (brasileiro). Além da importação de produtos
diversificados, essa companhia foi grande importadora de sal que se destinava
às charqueadas ainda existentes. Outras empresas fundadas por portugueses no
setor de importação e exportação foram Campos Assunção e Correa Leite. A firma
Campos Assunção foi fundada em 1889 como uma casa de importação, tendo destaque
para o atacado de madeiras e outros materiais de construção como cimento e
folhas de zinco. Já a empresa Correa Leite Cia., fundada em 1895, importava uma
gama de produtos bastante diversificados que se estendia dos alimentos aos
produtos de ferragens e tintas; no ramo da exportação, atuava principalmente
com o charque. A firma Correa Leite também atuou com empresas de navegação.
Os portugueses tiveram participação em outros
setores em Rio Grande ,
como na fundação dos dois principais hospitais da cidade, a Santa Casa de
Misericórdia, hoje Associação de Caridade Santa Casa, fundada em 1835, e a
Sociedade de Beneficência Portuguesa, em 1859. A fundação dessas
sociedades hospitalares foi fruto do empenho de imigrantes portugueses, e seus
prédios hoje compõem o patrimônio histórico da cidade do Rio Grande. Também faz
parte de criação dos portugueses na cidade o clube Centro Português (1932) e de
igrejas católicas e instituições escolares, além de inúmeros pequenos
estabelecimentos comerciais. Além da contribuição a indústria e a arquitetura.
Fotografia tirada da esquina da rua 24 de Maio em que se observa o prédio do
Hospital Beneficência Portuguesa.
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