Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 18 de julho de 2017

UM VISITANTE ILUSTRE

O diário escrito pelo esposo da princesa Isabel, o Conde D’Eu, descreve num trecho de seu relato, a sua viagem e estadia em Rio Grande em agosto de 1865. Frente as suas posturas pessoais e antipatias obtidas junto aos políticos da Corte do Rio de Janeiro, ele é um personagem controverso que tem sido investigado pela historiografia atual. Este diário foi publicado com o nome de História Militar do Rio Grande do Sul (Companhia Editora Nacional, 1936) e o trecho que trata da chegada a Rio Grande - cruzando a barra diabólica e a recepção dada na cidade ao integrante da família real- são muito interessantes para retratar o clima de guerra que se vivia naquele período. Poucas semanas antes, D. Pedro II aqui estivera e partiu para frente de combate em Uruguaiana: a Guerra do Paraguai era uma realidade dramática para quem viveu naquela época.

   “Pela uma hora da tarde encontramo-nos em frente da barra do Rio Grande. O comandante da barra, que veio visitar-nos no pequeno vapor Jaguarão, disse-nos que, segundo as últimas notícias, o imperador tinha chegado a 29 a Rio Pardo e partido no mesmo dia para Cachoeira, e que do teatro das hostilidades continuava a não se saber nada.

Posto que a entrada do porto do Rio Grande seja aparentemente muito larga, os canais navegáveis são muito estreitos, apertados entre bancos de areia que se estendem, tanto ao meio da entrada como ao Norte e ao Sul e sobre os quais as vagas constantemente rebentam. Por isso quando, tendo entrado pelo canal do Norte, passamos o semicírculo branco formado pela espuma das vagas, o comandante veio anunciar-me com muita satisfação que já tinhamos salvado a barra. Deixando à direita a pequena povoação chamada Estação da Barra, continuamos a navegar entre duas margens igualmente chatas, igualmente arenosas e, pelo menos, tão distantes uma da outra como as do Mersey em Liverpool. Pareceu-me que do lado do Sul alguma erva crescia na areia; pelo menos, viam-se bois que pareciam estar a pastar na praia. Não tardamos a avistar e a deixar também para a direita a torre da igreja e as poucas e humildes casas de São José do Norte, vila que tem o título de "heroica" mas que deve ser bastante triste. Estão ali ancorados alguns navios que na outra margem não encontram a altura de água que demandam. Enfim, por detrás de uma saliência da margem do Sul depara-se-nos a cidade do Rio Grande do Sul, precedida de uma floresta de mastros. Para nos aproximarmos dela é também preciso seguir um canal sinuoso e estreito, mas bem balizado com uma série de boias. São quase 9 horas, e como o vapor, por causa dos bancos, só de dia pode fazer a maior parte do trajeto daqui a Porto Alegre, tenho de dormir aqui. Aceito a hospitalidade que me oferece o Sr. Lopes de Araújo (a quem vulgarmente chamam Eufrásio), que já hospedou o imperador quando por aqui passou.  

         No molhe de desembarque está a Câmara Municipal, cujo presidente faz um pequeno discurso, outras autoridades e grande multidão, que solta os vivas do estilo e deita foguetes em todas as direções. Na rua principal estão formadas duas companhias da Guarda Nacional local. Parece que esta Guarda Nacional só foi chamada ao serviço depois da passagem do imperador, por ter sido mandada para o interior a guarnição de linha que até então ocupava a cidade. Compõe-se a Guarda Nacional unicamente de habitantes da cidade, na maior parte empregados do comércio. Por isso não se vê nela um só homem de cor, e o tipo geral indica um grau de educação superior ao dos guardas nacionais do Norte. Em compensação os oficiais mostram bem no aspecto que saíram agora mesmo dos seus escritórios e dos seus estabelecimentos de venda, e que vão já voltar para lá. Esta Guarda Nacional do Rio Grande tem pouco mais de 400 homens; usam quepe de couro, farda azul e calça branca.

A cidade do Rio Grande do Sul, que foi a primeira que se fundou nesta província, data de 1737; conta hoje, ao que me dizem, 14.000 habitantes e tem muitas casas de comércio europeias, na maior parte alemãs. Os principais objetos de comércio são os couros e a carne-seca. As ruas principais, em que se veem lojas elegantes, são três, todas paralelas à praia. Há muitas casas de azulejos, o que dá impressão de asseio e elegância. A rua mais importante apresenta hoje muitas bandeiras de consulados; também há uma nesse famoso consulado inglês, donde saíram as diatribes tão injustas do Sr. Prendergast Vereker, origem do conflito a que a mediação portuguesa ainda, infelizmente, não conseguiu pôr termo. As ruas são calçadas; mas antes de se passarem as últimas casas da cidade, já se está num mar de areia, em que se torna muito custoso andar. No caminho da fortificação passamos por um hospital, que uma Santa Casa de Misericórdia está construindo, com o auxílio do governo. Por ora só há uma das quatro fachadas; mas há de ficar um edifício muito bonito; pelo menos muito grande.

A fortificação a que me referi, à qual dão o nome de trincheira, é uma simples linha de redentes que deve fechar, de uma a outra praia, a ponta de terra em que está edificada a cidade. Fez-se em toda esta extensão um muro vertical de alvenaria, indispensável para sustentar as terras ou, para melhor dizer, as areias que devem formar a obra. A falta de coerência destas areias dificulta muito os trabalhos, pois que ao mais pequeno vento logo se acumula areia do lado exterior do muro. Parece que já de há muito se pensava em construir esta defesa; porém só ultimamente se ativaram as obras. Resultou evidentemente esta resolução da ideia que no momento atual, e não sem fundamento, me parece dominar as autoridades e os habitantes da cidade.


Temem que, se os paraguaios entrarem, como é muito para recear, na parte oeste do Estado Oriental, se dê uma sublevação geral dos "blancos", e que nesse caso os orientais, transpondo a fronteira do Chuí, venham atacar esta cidade. Foi com a mesma ideia que se armou a Guarda Nacional a cavalo de todas as povoações que se estendem daqui até ao Chuí e das que ficam próximas ao Jaguarão. 

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