A escravidão é um tema que a historiografia
tradicional enfatizou mais a ‘acomodação’ enquanto a historiografia dos últimos
50 anos tem enfatizado a ‘resistência’. Um interessante artigo de Gabriel
Aladrén (publicado na Revista ‘História Viva’ de junho último), contextualiza a
busca de alforria por escravos que combateram em guerras de fronteira
envolvendo Brasil, Uruguai e Argentina.
A partir da vinda de D. João ao Brasil em
1808, a escravidão se institucionaliza de forma ainda mais contundente. Já no
Uruguai e Argentina, os programas de independência avançam na emancipação dos
escravos, tanto que a partir de 1813, os escravos de países estrangeiros que
para ali fugissem, seriam considerados livres se ingressassem nas Províncias
Unidas do Rio da Prata. Também seria concedida liberdade aos escravos que se
alistassem nos exércitos platinos. Uma forte provocação ao escravismo
luso-brasileiro e uma tentadora atração para fugas dos escravos do Rio Grande
do Sul.
Neste artigo, o autor analisou as trajetórias
do angolano Antonio Angria e de Manoel Antonio da Cruz, este último, preso na Quitéria, será enfatizado.
Segundo ele, as autoridades judiciárias se preocupavam com os libertos,
sobretudo por receio de que suas ligações com escravos se tornassem
potencialmente perigosas para a ordem social. É o caso de Manoel Antonio da
Cruz!
Aladrén narra que
em “1825 os orientais iniciaram um movimento para repelir a ocupação
brasileira. Esse cenário alarmou as autoridades políticas rio-grandenses, e
qualquer tipo de subversão interna, como fugas, quilombos e revoltas de
escravos, era visto como potencialmente perigoso e favorável ao inimigo. Na
cidade de Rio Grande, a proximidade com a fronteira acirrava ainda mais os
ânimos. Eram comuns as acusações de pessoas que estariam incitando escravos a
organizarem revoltas ou a fugirem para se alistar no exército platino. Foi essa
a denúncia contra Manoel Antonio da Cruz. Preso em 1825 no distrito de
Quitéria, em Rio Grande, ele teria seduzido escravos para seguirem o partido
inimigo. Manoel era um pardo, ex-escravo, natural de Rio Grande, casado, 48
anos de idade. O interessante é que ele era sargento da Companhia dos Homens
Pardos. As companhias milicianas faziam parte do exército auxiliar e eram
divididas, desde o período colonial, em companhias de homens brancos, pardos e
pretos. Nas primeiras décadas do século XIX, as companhias de homens de cor
cresceram e muitos pretos e pardos tiveram oportunidades de se alistar no
exército brasileiro. Alguns chegaram a assumir postos de oficiais, trilhando um
caminho de ascensão social.
Manoel, como
miliciano, não recebia soldo regular, de modo que precisava recorrer a outros
expedientes para assegurar sua sobrevivência. Ele disse que vivia de seu
trabalho e era lavrador. Uma testemunha afirmou que Manoel costumava roubar
gado e cavalos. O comandante interino, que o remeteu à cadeia, ampliou as
acusações. Segundo ele, Manoel andava pelas casas do distrito conversando
secretamente com os escravos, “seduzindo a escravatura a favor do partido
inimigo (…) contra a causa preciosa do majestoso Império do Brasil”. Além
disso, disse que “este mesmo pardo conserva em si todas as qualidades capazes
de grande revolucionário, e nunca perde ocasião de haver a si quanto pode do
suor alheio, e os vizinhos todos estão prontos a fazer um nós abaixo assinados
a fim de o dito não existir nesta Província, pois no todo é inquietador dos
Povos, no lugar onde reside”.
As acusações não
foram provadas e, depois de algum tempo na prisão, Manoel foi libertado. O
episódio demonstra como os conflitos políticos e militares do período das
independências no Rio da Prata e no Brasil trouxeram ao mesmo tempo
instabilidade e novas possibilidades de resistência e ascensão. Os escravos e
os libertos enfrentaram a nova realidade acionando diversas estratégias. As
fugas, a resistência cotidiana e até mesmo a colaboração com seus senhores
permitiu-lhes conquistar a liberdade ou obter melhores condições de trabalho e
sobrevivência. Como é comum nos tempos de incerteza, as guerras e os conflitos
militares podiam resultar em tragédia ou triunfo para a vida dos negros
escravizados e livres na fronteira sul do Brasil”, conclui Aladrén.
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