Porto do Rio Grande em 1908

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quinta-feira, 13 de julho de 2017

A PROCISSÃO DOS DESESPERADOS

 Há quase 160 anos ocorreu uma das maiores manifestações públicas da história da cidade. Com a epidemia de cólera ceifando diariamente, o desespero levou os moradores as ruas para exigir ações das autoridades. Uma das manifestações foi a organização de uma procissão de penitência clamando que o poder divino livrasse os moradores do flagelo. Numa população de cerca de 12.000 pessoas a morte de quase quinhentas e o contágio da doença por possivelmente mais de um terço da população, a comoção chegou às raias da histeria coletiva.
     Lado a lado com a procissão dos desesperados, estavam às críticas aos membros da Câmara de Vereadores por não terem comparecido a atividade. O jornal O Povo (22 de dezembro de 1855) relatou detalhes da estética dos desesperados que tinham familiares doentes ou que já haviam falecido pelo mal: “um povo aterrado e contrito em procissão de penitência, sábado percorreu as ruas da cidade implorando do Senhor, que dele tenha compaixão. O coração estalava-nos de dor ouvindo as preces de uma mãe aflita. Tremíamos ouvindo o brado de compunção da escravatura aterrada ao último ponto”. A penitência que impuseram algumas senhoras causou revolta pois mulheres acompanhavam a procissão de pés descalços e algumas amparavam sobre a cabeça o pesado andor de Nossa Senhora, “arrancaram-nos lágrimas de compaixão, e de íntimo do peito bradamos contra os causadores de nossa aflição. Inocentes meninos calçando por penitência a fria areia como os delicados pés nus, não conhecendo o perigo expuseram-se a ser infectados do flagelo. Quando uma população inteira procura os recursos da fé e nela só confia é que o coração humano sangra em lenta agonia”. Segundo o articulista, “a ira de Deus pesa sobre nós e com o arrependimento e constrição queremos abrandá-la”. O clima de comoção e desespero é detalhado nas imagens de uma mãe que tendo em seus braços “seu filhinho correndo-lhe lágrimas pelas faces, caídos os cabelos e descalços os pés, soluçava orando; e sua oração era triste e fervorosa que devia ser ouvida do Onipotente”. A tragédia familiar também foi representada por uma esposa cheia de “desesperação e quase sem acordo arrancava orando o seu cabelo e penitente implorava pelo esposo e por si. Uma velha carregada de anos, arrimada ao seu bastão, a custo movia os mal-seguros passos e rodeada de seus filhos suplica ao céu movia os lastimosos olhos”. Era um “quadro triste e majestoso! O orgulho humano abatido recorria ao seu último arrimo – a fé! A pobreza, a escravatura, a mocidade e a velhice, sem distinção, na simplicidade de seus corações, orava com fervor ao Onipotente. Em todos os semblantes impressos de melancolia via-se pintada a desesperação, a mágoa de um povo inteiro. O prazer, o riso, de todos tinha fugido, dando lugar a negro e profundo desespero”. 
A epidemia de cólera teve como epicentro o cemitério do BomFim daí a insistência no tema pelo redator José da Costa Azevedo: “O que exigia o povo? O cemitério dentro da cidade, cheio de cadáveres, quando uma epidemia devastadora flagela a população; - os miasmas de cólera que se desprendem de suas covas, infeccionando a atmosfera que alimenta a vida” (O Povo, 29 de dezembro de 1855).
A pressão da imprensa local e as manifestações populares levaram ao abandono do cemitério do BomFim e o início dos enterramentos no cemitério extra-muros, além das trincheiras, afastando os mortos dos vivos num processo inexorável em nível de mentalidades. A morte reproduzia a morte (pelo suposto contágio atmosférico) e sua presença é lançada para o cemitério que garantia uma distância segura para os moradores que estavam dentro dos muros da cidade antiga. Era a transição para o surgimento de um novo espaço de expansão urbana, que três décadas depois recebeu a indústria Rheingantz, a Estação Ferroviária e um crescente número de operários que deram identidade ao bairro que nascia: a Cidade Nova.


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