Há 20 anos atrás, no
ano de 1997, defendi minha tese de Doutorado em História do Brasil na PUCRS.
Quando da publicação da tese (em formato de livro) o orientador Arno Alvarez
Kern escreveu o prefácio que permanece atual. Duas décadas é uma duração
temporal que permitiria mudanças no cenário historiográfico o que de fato ocorreu
num ritmo avassalador de defesas de mestrado e doutorado em História em várias
universidades brasileiras. Mestres e Doutores, nas mais diferentes áreas do
conhecimento das Ciências, já somam 1 milhão de diplomados no Brasil! Porém, a
história feita por historiadores a partir de metodologias rigorosas ainda tem
sido, por vezes, profanada em descompasso com o conhecimento científico. Reproduzo
o prefácio do prof. Arno Kern para evidenciar o verdadeiro espírito científico
que deve conduzir a ciência histórica.
“As análises historiográficas realizadas até hoje no
Brasil, com raras exceções, têm sido pouco abrangentes e insatisfatórias do
ponto de vista da ciência histórica. Este fato se deve principalmente a não
terem sido sempre realizadas por historiadores. Quando escritas por literatos,
elas se caracterizaram sobretudo por comentários relativos a estilo, forma e
estética, sem nenhuma inserção no contexto da discussão científica da história.
Ao serem escritas segundo uma ótica filosófica, elas sempre se apresentam como
teorizações sobre teorias, sem a necessária relação com o contexto histórico,
nem o necessário contraste com as evidências empíricas. Mesmo alguns trabalhos
escritos por historiadores terminam por centrar sua atenção nas principais
correntes historiográficas ou sobre a epistemologia da ciência histórica, ao
longo das últimas décadas.
A pesquisa historiográfica do Professor Luiz Henrique
Torres, da Universidade Federal do Rio Grande, se estrutura segundo um outro
ponto de partida e uma abordagem original. Trata-se da tese de doutorado de um
historiador perfeitamente imbuído das atuais tendências e orientações da
historiografia contemporânea. Em outras palavras, isto significa um olhar
crítico sobre as representações coletivas de um significativo grupo de
historiadores sul-rio-grandenses que, ao longo dos séculos 19 e 20, buscou
posicionar-se sobre o lugar que as Missões Jesuítico-Guaranis ocuparam no
processo histórico formador de nossa sociedade.
A análise do autor é sempre pertinente e adequada,
voltando-se para a diversidade dos modos de representação histórica,
contextualizando-os numa dupla ótica espaço-temporal. Como a temática do
trabalho precisa muito bem, trata-se da análise crítica das representações
coletivas desta pequena comunidade de historiadores gaúchos – representantes de
Clio entre nós – a respeito do papel histórico dos jesuítas e de guaranis em
nosso passado.
Objetiva-se analisar a História e o discurso produzido ao
longo dos séculos 19 e 20. Trata-se de um discurso escrito que se pretendia
verdadeiro e definitivo. Entretanto, como nos mostra muito bem a análise de
Torres, estes historiadores foram apenas homens que produziram páginas de um
discurso não apenas sobre o passado, mas sobre o seu passado. As
análises desenvolvidas pelo autor nos evidenciam que a historiografia gaúcha
produzida no passado é um testemunho excepcional que temos sobre o nosso
passado. Principalmente quando nos damos conta de que esta produção
historiográfica se desvela naquilo que tem de mitos e de ambigüidades. Este é
um estudo amplo e detalhado, uma análise metódica mas contundente sobre o tipo
de historiografia que se produziu ao longo de dois séculos. Esta é a realidade
que esta pesquisa deliberadamente tenta nos fazer compreender, desvelando um
assunto pouco familiar mesmo aos historiadores atuais. Tanto no Brasil como em
outros países, a historiografia é um gênero ainda muito negligenciado.
O trabalho de pesquisa realizado pelo Professor Luiz
Henrique Torres, entretanto, nos permite constatar uma série de problemas
relacionados ao fazer história, como é o caso flagrante da subjetividade dos
historiadores e as limitações na utilização das fontes documentais. Torna-se
mesmo um pouco constrangedor, para alguns de nós, encontrar na leitura destes
discursos que se pretendem históricos tantos devaneios, tantas lendas e tantas
ilusões. Percebemos então que os historiadores do passado não conseguiram
descartar-se dos frutos do imaginário coletivo de sua época. Em algumas obras
podemos perceber as interpretações racistas de Gobineau ou as etapas comtianas
da história. Em quase todas, encontramos os preconceitos da sociedade local
apresentados como explicações definitivas da história.
Entretanto, este cuidadoso trabalho de pesquisa nos
evidencia que estes mitos, inseridos nos discursos historiográficos do passado,
são fontes primárias de extremo valor para a compreensão de nossos
historiadores do passado. A origem destes mitos se encontra nos séculos 17 e
18, pois eles nasceram no momento mesmo em que os indígenas guaranis e os
missionários jesuítas viviam a sua história. Já a partir desta época estes
mitos começaram a ser habilmente historiados, reproduzindo-se até recentemente.
Na análise de um historiador contemporâneo como Luiz Henrique Torres, a
produção historiográfica tornava-se, assim, fonte documental primária.
A historiografia contemporânea tem se voltado muitas
vezes para o estudo dos mitos, das antigas ficções geradas pelas sociedades do
passado e portanto dos seus aspectos simbólicos. No mesmo momento em que isto
acontece, poderíamos pensar que é por puro acaso que descobrimos o quanto há de
ficção e de mitos em nossa própria história. Isto não é verdade, como não é
verdadeiro pensar que a objetividade da História é um sonho impossível. Não
podemos também concluir que a ciência da história está morta ou senil, não
apenas esquartejada em migalhas mas igualmente transformada em uma
história-ficção.
Ao longo das últimas décadas, a ciência da História
continuou seu caminho entre nós, agora em um contexto renovado pela formação de
recursos humanos voltados para a profissão de historiador, nos cursos de
pós-graduação.
O discurso dos historiadores ganhou em autenticidade
documental, em densidade teórica, em volume de produção e em variedade
temática. A imagem descrita pelos historiadores atuais tende a ganhar em
nitidez, a partir de um racionalismo crítico mais objetivo e explícito. Ganhou
igualmente uma profundidade de campo muito grande, pois acrescentamos às nossas
análises o documento arqueológico, remontando a nossa história local ao final
da última glaciação.
Mesmo as brumas e as névoas dos preconceitos e das falsas
interpretações, que ocultaram muitas das realidades históricas de nosso passado
colonial, relativas às Missões Jesuítico-Guaranis, foram dissipadas. Na
presente tese, elas não foram apenas recuperadas do ponto de vista
metodológico, mas igualmente analisadas criticamente, tornando-se assim um tema
historiográfico.
A nossa historiografia passada é rica em versões,
formadas a partir de visões singulares e em memórias diferentes. Este caminho
de dois séculos foi balizado por acertos e erros. Os testemunhos documentais
aqui analisados nos permitem fazer duas observações fundamentais, que vão além
das considerações anteriores. Em primeiro lugar, o discurso histórico não
apenas nos revela uma realidade do passado. Ele mesmo é um importante
testemunho das diversas facetas das realidades coletivas do passado registradas
por este singular grupo formado por historiadores. Finalmente, tanto o homem do
passado como o atual demonstram carregar consigo uma necessidade imperiosa de
história. A mesma história que os projeta através dos tempos” (Prof. Dr. Arno
Alvarez Kern, 1997).
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