Porto do Rio Grande em 1908

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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

CABICHUÍ

 

Cabichuí, 2 de dezembro de 1867. Acervo: Biblioteca Nacional do Paraguay. 

Um dos jornais mais racistas que já pesquisei é o Cabichuí

A publicação circulou entre 1867-1868, no contexto da Guerra do Paraguai. A impressão era realizada no Quartel General Paraguaio de Paso Pacu (Assunción). 

A linguagem é virulenta e brutalmente depreciativa. Um pasquim sangrento em tempos de guerra! 

O texto e as charges, eram repletas de referências aos inimigos da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) que eram associados a animais (irracionais) e no caso do Brasil, o símbolo era homens "negros", muitas vezes usando saias (ausência de hombridade).

 Charges, textos ou personagens usavam o mais baixo calão discursivo para depreciar os "covardes negros brasileiros" que eram "sempre" humilhados nos confrontos como o poderoso exército paraguaio... 

Cada derrota se transformava num ato de heroísmo e de superação na defesa da liberdade contra os invasores numa contínua construção discursiva de mentiras geopolíticas. 

A partir da década de 1970 a historiografia dominante sobre a Guerra do Paraguai construiu esta visão tendenciosa do Conflito. As pesquisas ignoravam as inúmeras fontes que evidenciavam outras perspectivas que fugia a dualidade agressor (Tríplice Aliança) e vítima (Mariscal Lopez), como o Cabichuí e o jornal paraguaio Centinela (periódicos que reproduzem o discurso oficial de Lopez...). 

A história desta "tragédia" acabou sendo historiograficamente reconstruída como "farsa". E as farsas se fazem verdades que resistem ao olhar crítico da necessidade de evocar inúmeras variáveis explicativas para o passado. Nas duas últimas décadas isto foi mudando...  

Apenas um exemplo do conteúdo do Cabichuí está na charge reproduzida acima. Os "Voluntários da Pátria" seriam todos escravos negros que eram levados acorrentados e ameaçados pelas chibatas para à frente de combate. Eram "inimigos racialmente e moralmente inferiores" pois as forças brasileiras nem de homens livres era constituída. Não estavam a altura moral e étnica dos brancos descendentes dos espanhóis e dos guaranis. Afinal, eram fruto da miscigenação. 

Diga-se que a República no Paraguai manteve a escravidão vigente e negros eram recrutados para o serviço militar compulsório no esforço de guerra. Ou seja, mesmo defendo com armas o seu país ocorria a associação dos negros com a degeneração étnico-moral dos brasileiros. 

De fato, os Voluntários da Pátria no Brasil era um grupo bem mais heterogêneo constituído por índios (como do Chaco), escravos negros, brancos urbanos e rurais etc. Do negro morador da senzala (por vezes, indicado por seu proprietário para ir para guerra em seu lugar) ao balconista no comércio urbano, ocorria a participação voluntária (negros fugiam dos seus senhores para se apresentarem para alistamento com a promessa de obterem a liberdade) ou o recrutamento forçado para constituir um efetivo militar para enfrentar o poderoso exército paraguaio. Para fugir da carnificina ocorreram fugas e deserções, seja, de brancos ou negros livres. 

Apesar dos problemas, foram formados 57 Corpos de Voluntários da Pátria, quantitativo essencial para o grande número de combatentes de infantaria e cavalaria envolvidos no conflito. Foram 38.000 voluntários dos quais 40% morreram, sofreram ferimentos, doenças ou ficaram inválidos. Qual era a participação de negros escravos ou forros (livres) neste percentual? Este é um dado desconhecido, mas, hipoteticamente, não deve ter superado 50% do total. 

Os combatentes negros que lutavam por sua liberdade ou os brancos que lutavam pela sobrevivência, participaram de combates sanguinários que colocaram frente à frente dezenas de milhares de militares paraguaios e da Tríplice Aliança (como em Tuiuti). 

A sociedade escravista brasileira estava amplamente representada na guerra por diferentes estratos sociais. Fruto desta participação foi fundamental para criar uma consciência abolicionista no Exército e em muitos combatentes. 

O reconhecimento do Cabichuí de que o escravo negro ou livre não é um ser humano (com dignidade e capacidade) foi superado com as derrotas posteriores que lançaram por terra os discursos de superioridade militar e étnica.  

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