Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 6 de outubro de 2020

MEMÓRIAS

 

                                              Hermann Wendroth, 1852. Acervo: Autor. 

Acertou quem respondeu Rio Pardo, a "tranqueira invicta". 

Esta gravura de Wendroth estava na parede da sala onde moraram os meus pais em Rio Pardo. Eu ficava olhando a aquarela e tentando entender o que queria dizer aqueles detalhes de prédios e embarcações. Seria invenção do autor ou uma imagem congelada de um tempo antigo? 

O Jacuí e o Rio Pardo, as ruas e prédios históricos se tornaram espaços de intimidade. E estes atos de curiosidade e intimidade, começaram muito tempo antes. Quando criança visitava minha avó que morava em Rio Pardo numa casa alugada que hoje renderia muita pesquisa: era uma casario em estilo colonial que devia ter sido construída entre 1830-1850 com uma senzala urbana no porão! 

Recordo que no porão havia correntes nas paredes e escutava histórias da escravidão e de conflitos militares ali ocorridos. Uma lenda contada por tios era de que ocorreram execuções numa das paredes do pátio e de que isto ocorreu durante a Revolução Farroupilha. Inclusive ossos foram escavados de frente deste paredão (ficaram em dúvida se era ossos de animais ou desejavam apimentar a lenda...).  O fato é que a parede tinha inúmeros "buracos" e encontrei vários projéteis enterrados no chão, além de muito chumbo enterrado. Era divertido tentar escavar, mesmo que muito superficialmente, algum objeto. 

Hoje, seria possível buscar a identificação da munição para estabelecer uma temporalidade: recuaria a Revolução Farroupilha, Revolução Federalista, outro conflito ou era apenas um local de treinamento de tiro? 

Como eu diria, ali a história foi "muito quente", pois eram vários casarões coloniais na mesma quadra e quase em frente fica o Solar do Almirante Alexandrino de Alencar construído em 1790 e que hoje é um Museu. 

Os detalhes de construção interno e externo destes casarões são fascinantes. Recordo que a fechadura e a chave era de um tamanho descomunal para o nosso padrão contemporâneo. Os vidros coloridos das janelas e a espessura das paredes chamava a atenção. Cada centímetro estava recheado de história: da casa grande a senzala, incontáveis histórias poderiam ser contadas e escritas. 

Não foi por acaso que até Gilberto Freire se interessou pela história e cultura local, lá nos anos 1930-1940. Um de seus discípulos, o professor Dante de Laytano escreveu um livro em 1946 "Almanaque de Rio Pardo" trazendo muita informação sobre as estruturas materiais que recuavam ao século XVIII e XIX, nos casarios, estâncias e no cemitério, que em seu conjunto, davam um panorama do passado luso-brasileiro a partir da cultura material. 
      
E aí surge outra história paralela: quando estava iniciando o  Mestrado em Porto Alegre a vontade foi pesquisar a história de Rio Pardo. Quem sabe estaria nascendo um historiador de raiz, que viveu um pouco a atmosfera daquelas estruturas que sobreviveram ao tempo e queria entender o que ocorreu naquele passado. Fui ao arquivo histórico local e pedi para ter acesso a documentação ou a uma relação escrita do que existia de documentos. Após quinze dias de enrolação me entregaram uma folha de ofício com um carimbo em que tinha um histórico capenga e cheio de erros da evolução da cidade. Nenhuma fonte ou disposição para permitir o acesso as fontes. 

Foi uma aula de como destruir uma vocação de historiador? Neste caso, claro que não! É voltar para Porto Alegre e vasculhar arquivos e hemerotecas que os temas estão gritando para serem pesquisados; os documentos imploram para serem lidos e desejam ardentemente terem a chance de ganharem novamente vida. Quem não quer falar de história são alguns alienados e oportunistas que não querem receber um pesquisador que vai atrapalhar suas rotinas. 

Me estiquei demais nestas lembranças do passado. É que muitas escolhas futuras podem ter sido influenciadas por algumas vivências pretéritas e que ficaram depositadas no inconsciente: aquela senzala, aqueles projéteis e alguns cacos de louça enterrados no chão, eles eram instigadores da busca de respostas. A História e a ciência nascem das perguntas e constroem através da sistematização as interpretações.  

A vida é uma trajetória inesgotável em busca do esclarecimento. Quando criança eu nada entendia daquilo e hoje teria um olhar analítico que me levaria muito longe na investigação do que ocorreu num espaço distante naquele casarão colonial. 
 
 O detalhamento desta imagem de Wendroth ficará para amanhã. Espero receber os leitores para conhecer um pouco desta cidade bucólica, de caminhar lento e que está repleta de histórias. 

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