Porto do Rio Grande em 1908

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sábado, 29 de agosto de 2020

A CEIFADEIRA E A EPIDEMIA

O Bisturi, 6 de março de 1892. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 

 Neste desenho está representada a epidemia, que foi chamada pelo chargista de "velha senhora", pois, a muito tempo ela frequentava/frequenta a sociedade humana. 

Não havia uma epidemia específica neste ano de 1892, mas, as maiores apreensões eram com a febre amarela (que era endêmica, cujos surtos é que preocupavam) e com a peste bubônica que estava fazendo centenas de vítimas na Argentina. 

Numa cidade de porto marítimo como Rio Grande, o medo da chegada de um navio com pessoas contaminadas era uma realidade e não uma ficção. 

A população sabia disso e ao mesmo tempo mantinha a sua vida cotidiana, pois, a economia parada seria uma ruína ainda maior que traria o espectro da fome para a maioria dos moradores. O que se desejava é para que os casos fossem poucos e os sintomas amenos e restritos. Algumas poucas semanas de preocupação e tudo voltava ao caráter endêmico: esperando o próximo desembarque mais impetuoso desta "velha senhora" que ceifava a vida sem compaixão.  

Mas a representação da epidemia com sua ceifa não se voltava apenas a doença concreta. Era um recurso usual da imprensa para promover ataques a administração pública e suas mazelas e dificuldades na higienização urbana. Ainda mais que a teoria dos miasmas ainda tinha fôlego para considerar a falta de asseio e a emanação oriundas da decomposição e sujeira (esgotos na praia e nos quintais, pântanos, águas paradas em valetas ou canaletes, restos de animais em decomposição etc) era a forma de contaminação e difusão mais eficiente para as doenças.  Hoje sabemos que não era o ar corrompido a transmitir doenças e sim, a água e os alimentos contaminados pela ausência de esgoto, de refrigeração e de asseio na manipulação da comida; a falta de cuidados pessoais de higiene e de manejo de animais e de seus produtos derivados etc; locais insalubres (no trabalho e em casa) e práticas culturais que facilitavam a proliferação de doenças infecto-contagiosas. Estes, ao lado de ausência de tratamentos profiláticos e medicamentosos, eram os fatores mais efetivos para as doenças. 

Este campo de reflexão sobre as epidemias, como neste período do jornal em 1892, é muito interessante para pensar a pandemia que nos assola no presente. 

Parece um assunto do passado, mas, há muitos paralelos que nos remetem do presente às práticas antigas. Os jornais e os médicos da época, ressaltavam como era difícil convencer as pessoas a mudarem seus hábitos de higiene e cuidados pessoais. 

Como é difícil, pensando de forma ampla no presente, conseguir disciplinar uma parte da população para  cuidados intensivos buscando conter a proliferação de um agente patológico, como o coronavírus. 

Se não fosse a difusão da vacinação, continuaríamos a ser dizimados aos milhões pela ação de várias doenças que hoje estão sob aparente controle. No século XIX, com exceção da varíola, não havia vacinas para combater os vírus, bactérias, vibriões etc. Um exemplo é o bacilo de Kock, a tuberculose, que entre 1700 e 1900 matou aproximadamente 1 bilhão de pessoas. E onde a vacinação começar a ser abandonada, como estamos assistindo, os micro-organismos vão retomando sua caminhada de contágio como é o caso do sarampo e também da tuberculose, que tem proliferado pelo abandono do tratamento pelos contaminados. 

E quando me referi a reflexão é comparando o passado e o presente, as notícias e crônicas jornalísticas que enfatizavam a dificuldade em fazer avanços na mudança de hábitos do convívio em sociedade. E estas leituras que me refiro remetem a um longo período de 1855 (cólera) a 1918 (gripe espanhola). 

Sempre se soube que a cidade portuária não poderia parar por muito tempo. E estas epidemias/pandemias foram "clementes", se pronunciando de forma aguda e ceifante de vidas, mas se esgotando num período de dois meses. A contaminação foi tanta que criou a "imunidade de rebanho"? O vírus não suportava mais ver tantos enfermos? Como se o vírus tivesse esta consciência... ou será que tem alguma...

E a civilização tropeçou e continuou caminhando nos anos seguintes e que aprendizado deixou como legado? Da gripe espanhola ficou o silêncio e o esquecimento até a sua redescoberta nos anos 1980: pelos historiadores... os escavadores dos vírus que ainda dormitavam nos documentos da gripe... e daí se percebeu quanto esquecimento o assunto teve... E hoje faz falta ela não ter sido lembrada e acalentada nos braços como um sonho ruim do tempo dos nos avós e bisavós. 

Ter nos braços e embalar esta ceifadeira poderia ter nos trazido lições de que muitos cuidados e atenção ela merece. Que ela não pode ser desprezada e que será preciso continuar vivendo sob a sombra perene dela por muito tempo. Que ela poderá voltar a qualquer momento até porque não terá ido embora. Que será preciso conviver e conhecer; modificar alguns hábitos para podermos sobreviver.  

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