*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz
Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no
século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Edição de 1927 da Biblioteca Rio-Grandense. |
Dreys
Descrevendo as características
geográficas daquela que chamava de cidade de S. Pedro, no que tange a limites e
relevo, Nicolas Dreys (Notícia descritiva da Província
do Rio Grande do Sul. 4.ed. Porto Alegre: Nova Dimensão/EDIPUCRS, 1990) apontava a importância das ilhas (dos Marinheiros e
Torotama) para o abastecimento da localidade, quais, mesmo não estando
totalmente isentas de areia, eram ao menos cobertas de matas e de verdura assaz
suculenta para dar pastagem ao gado leiteiro. Destacava ainda que os matos da
Ilha dos Marinheiros não eram de pouca importância, pois forneciam quase
exclusivamente a lenha que se consume na cidade. Segundo sua descrição, havia
ainda na ilha uma fonte natural de água límpida, eu a classe abastada preferia
à água das cacimbas[1]
e que mandava buscar diariamente para seu consumo, apesar da distância; bem
como existiam algumas chácaras produzindo com abundância todas as hortaliças e
legumes. Lamentava, porém, que as ilhas não tivessem quase população alguma,
além dos escravos empregados na manutenção das quintas e de poucos pescadores,
cujas famílias se ocupavam ao mesmo tempo da criação de algum gado[2].
Dreys contradizia muitos dos autores
que apontaram como um problema do Rio Grande o abastecimento de alimentos,
destacando, no que tange a esse assunto, a abundância da vila. De acordo com
ele, não havia quase casa alguma que não tivesse seu quintal, considerando esse
fato como um tipo de fertilidade, onde eram produzidas frutas e hortaliças com
tão exata periodicidade que praticamente inutilizava os suprimentos diários que
recebia a vila da horticultura vizinha. E complementava afirmando que a cidade
de S. Pedro nunca deixara, em tempo de paz, de manifestar uma completa fartura
de tudo que se referia às precisões do “homem social”[3].
O autor relatava também que a
localidade era privada de passeios, questionando quem poderia passear num
terreno que fugia debaixo dos pés e onde se procurava em vão algum abrigo
contra os ardores do sol. Somava a isso a própria índole dos habitantes,
caracterizada por outros costumes, pois laboriosos e sociáveis, os rápidos
instantes que lhes deixavam os cuidados do comércio como o qual estavam
geralmente ocupados, eles os consagravam a reuniões domésticas mais profícuas e
menos monótonas[4].
Lançando mão de seus conhecimentos da
arte bélica, o escritor francês também teceu considerações sobre a defesa do
Rio Grande, composta por algumas peças de artilharia muito próprias para
hostilizar o inimigo que se apresentasse da parte do mar, porém, desprovidas do
mesmo grau de utilidade contra um ataque intentando do lado oposto, tendo de
admitir inovações metódicas melhor calculadas para coadjuvar a coragem
experimentada da guarnição e dos habitantes. Também causava estranheza ao autor
a presença de ruínas numa povoação tão recente, chegando a estabelecer
conjeturas quanto às possíveis causas de uma mudança na localização da vila[5].
Nicolau Dreys destacou ainda que a
Câmara Municipal do Rio Grande tomara providências para corrigir o “ridículo
engano” em que incorriam a grande parte das vilas marítimas do Brasil,
apresentando ao viajante a parte traseira de seus edifícios, construindo para
evitar o citado problema, cais que foram conquistados sobre o mar, por meio de
aterros dispendiosos, que dotaram o Porto de uma zona de cais largos e
regulares, nos quais poderiam encostar as embarcações para largar ou receber a
carga e bordados de armazéns e casas, cuja frente advogava aos olhos do
estrangeiro a causa do bom senso e da civilização progressiva dos habitantes.
Quanto ao Porto, caracterizo-o como seguro, sendo uma criação recente,
inteiramente devida ao ânimo e aos sábios cálculos dos rio-grandenses, pois os negociantes da
praça teriam mandado vir e colocado em atividade nos baixios do Rio Grande, uma
máquina especial com a qual conseguira-se desentulhar os canais que circulavam
entre os bancos de areia, abrindo às embarcações carregadas um caminho fácil,
até então desconhecido e considerado como impraticável[6].
Sobre a Barra do Rio Grande, informou
que a mesma contava com um movimento anual de duzentos e cinqüenta a duzentos e
oitenta barcos maiores, sendo aproximadamente duzentos pertencentes a
comerciantes da Província (como donos ou interessados) e os restantes de
propriedade estrangeira, apontando a presença de embarcações de diferentes
nacionalidades como portuguesas, francesas, inglesas, americanas, italianas e
das cidades hanseáticas. Ainda sobre o mesmo tema, mais uma vez Dreys destacava
o caráter empreendedor dos negociantes do local, os quais teriam mais longe
levado a ousadia dos seus esforços a tão benéficos melhoramentos, pois foram ao
meio das vagas do oceano arrancar as areias que o mar, com o auxílio dos
séculos, tinha amontoado na Barra e proporcionaram assim para todos os navios
um caminho mais vasto e mais seguro. E, também sobre esse empreendedorismo,
concluía que o que estava em projetos em outras posições não menos importantes,
talvez ali estivesse em execução[7].
Desse modo, os escritos de Dreys
contribuíram para a reconstrução histórica do Rio Grande, pois, apesar de
bastante resumido, seu valor é aumentado pela fraca produção historiográfica[8].
Abeillard Barreto considera que o livro de Nicolau Dreys é um dos melhores que
legou o segundo quartel do século XIX, uma vez que, sendo confeccionada mais
com um sentido didático, sua obra é hoje a mais citada por quanto têm escrito
sobre o Rio Grande do Sul, constituindo prova do crescente apreço em que é tida
e de haver superado o espírito com que foi elaborada[9].
[1]
Apesar dessa preferência da “classe abastada”, Dreys destacava a qualidade da
água com a qual Rio Grande era abastecida: A água potável que se acha no
território da cidade de S. Pedro é a água de cacimba; chamam cacimba a um posso
praticado nas areias cujas paredes são amparadas pro duas ou três pipas, sem
fundos, superpostas umas às outras, onde a água aparece sempre a tão pouca
profundidade que os aguadeiros costumam extraí-la por meio de um coco embutido
na ponta de um pau. A água da cacimba é talvez uma das mais puras que se pode
beber no globo, e sua qualidade incorruptível é bem conhecida dos marinheiros,
que a procuram com preferência. É certo que nos primeiros dias a água de
cacimba deixa alguma coisa que desejar ao hidrópota, mas também preciso é
dizer, conforme a nossa própria experiência, que não há nada mais fácil do que
o acostumar-se com ela, e, depois, de acostumado, é então a água mais doce das
fontes correntes que obriga o órgão do gosto a uma educação. DREYS. p. 79-80.
[2] DREYS. p. 47-48.
[3] DREYS. p. 79.
[4] DREYS. p. 78.
[5] DREYS. p. 80-81.
[6] DREYS. p. 78-79.
[7] DREYS. p. 106.
[8]
NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudos do Porto e da Barra do Rio Grande. In:
ALVES, Francisco das Neves & TORRES, Luiz Henrique (orgs.). A cidade do Rio Grande: estudos históricos.
Rio Grande: FURG\SMEC, 1995. p. 103.
[9]
BARRETO, Abeillard. Viajantes estrangeiros no Ri Grande do Sul até 1900. In: Fundamentos da cultura rio-grandense.
Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul,
1962. 5ª série. p. 43-44.
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