Revolta da Vacina no Rio de Janeiro entre 10 e 16 de novembro de 1904. Revista O Malho (1904) |
Desde a Antiguidade casos de varíola foram
relatados na África e na Ásia constituindo-se num flagelo para a humanidade.
Conforme a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) acredita-se que a varíola tenha
surgido há mais de três mil anos, provavelmente na Índia ou no Egito. Na face
do faraó Ramsés 2º foi encontrado marcas deixadas pela doença. Em algumas
culturas antigas, a letalidade da varíola era tamanha entre as crianças que
estas só recebiam nomes se sobrevivessem a ela. No decorrer do século 18, a doença matava um
recém-nascido em cada dez na Suécia e na França, e um em cada sete na Rússia.
Além do medo da morte, os enfermos ainda tinham que enfrentar a possibilidade
de carregar cicatrizes profundas, principalmente no rosto, ou mesmo de perder a
visão – no Vietnã de 1898, 95% dos adolescentes carregavam marcas da doença, e
nove em cada dez casos de cegueira eram atribuídos às complicações decorrentes
da moléstia. A varíola era uma doença infectocontagiosa, exclusiva do homem de
surgimento e desenvolvimento repentinos e causada pelo Orthopoxvírus
variolae, um dos maiores vírus conhecidos e que é extremamente resistente
aos agentes físicos externos, como, por exemplo, variações de umidade e
temperatura. Conforme matéria da Fiocruz, a vacinação em massa permitiu que o
número de casos no mundo em cada ano caísse de 50 milhões, em 1950, para 15
milhões em 1967. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde lançou um
plano intenso para a completa erradicação da doença. O programa foi um sucesso
e em 1977 registrou-se o último caso natural da doença na Somália seguido de
outro ocorrido em Londres, em 1978, devido a um acidente de laboratório. Em
1980, após inúmeras verificações, a OMS finalmente declarou a doença extinta e
pediu para que os laboratórios do mundo destruíssem suas amostras de vírus.
Foram atendidos por quase todos, menos pelo laboratório do Centro de Controle
de Doenças (CDC) de Atlanta, EUA e pelo Instituto Vector da Rússia, últimas
instituições com estoques declarados do O. variolae.
BRASIL/RIO GRANDE
No Brasil a varíola era também denominada de
‘bexiga’ (varíola major) e provocou muitas perdas humanas nos últimos séculos.
O uso da vacina contra a varíola foi obra do inglês Edward Jenner em 1796,
representando no maior avanço para evitar o contágio. A varíola é uma doença
infecciosa que devastou comunidades em todo o planeta, caracterizando-se por quadros
clínicos severos com uma letalidade de 30% dos casos e um contágio através das
secreções das vias respiratórias e lesões da pele de pacientes. Apesar dos bons
resultados da vacinação em outros países, a resistência da população brasileira
caracterizou as tentativas das autoridades de promoverem a vacinação em massa. No ano de 1904, o
Rio de Janeiro foi abalado pela Revolta da Vacina, quando populares promoveram
graves distúrbios resistindo à determinação da obrigatoriedade da vacinação,
resultando em várias mortes e inúmeras prisões.
O Echo do
Sul, um jornal que sistematicamente criticava a intendência municipal na
sua política de saúde pública e no combate as epidemias, afirmou em sua edição
de 12 de junho de 1905: “Quando se esperava o declínio espontâneo das epidemias
que balanceiam a alma rio-grandense, eis que os elementos de destruição
recrudescem assustadoramente, à sombra da revoltante indiferença de todos
quantos tem a obrigação imperiosa de zelar pela saúde pública! É tétrico,
horrível e inenarrável o que se passa! Enquanto traçamos estas linhas, por
entre as comoções que a piedade nos desperta, quantas lágrimas, quantos
suspiros doloríssimos, quantas dores, quanto luto vai por esse Rio Grande
desolado!”
O
desespero já estava expresso em janeiro daquele ano, quando a população apelou
à intervenção divina para erradicar o sofrimento instalado. Foi organizada uma
procissão que saiu da Igreja Matriz de São Pedro: “...haverá na próxima sexta-feira,
uma procissão de preces para que a Misericórdia Divina se compadeça desta
população flagelada pela varíola, que tem ceifado tantas vidas preciosas e
enlutado inúmeras famílias. O préstito religioso se deslocará da igreja Matriz,
às 5 horas da tarde, figurando neles os andores do Coração de Jesus e de N.S.
do Rosário, este carregado pelos respectivos irmãos e aqueles pelas zeladoras
do Apostolado da Oração” (Echo do Sul, 31/01/1905).
A
falta de higiene urbana era um problema grave, especialmente durante a epidemia
quando as roupas e pertences dos doentes deveriam ser incinerados para evitar o
intenso contágio provocado pela doença. “As carroças que fazem o serviço de
remoção escolheram atualmente para despejo do lixo um lodaçal existente no fim
da rua Zalony, além da antiga praça das carretas. Os resultados dessa
imprudência far-se-ão sentir inevitavelmente no futuro. Condenada pela ciência
a prática de aterrar ruas com lixo, ela não devia ser mantida, máximo numa
situação sanitária deplorável como a que atravessamos” (Echo do Sul,
07/05/1905).
Além da precária higiene, da existência dos
cortiços insalubres no centro e na periferia, pela falta de uma ação saneadora
por parte dos agentes da saúde pública municipal, outro fator levou a
proliferação tão acentuada da varíola na cidade. Se quase 500 pessoas morreram
neste ano, o número das que desenvolveram a doença chegou a patamares muito
maiores abalando o funcionamento normal da cidade e desencadeando o clima generalizado
de medo característico na trajetória da humanidade quando da eclosão das
epidemias.
Há pouco mais de um século a cidade do Rio Grande passava por momentos dramáticos, na expectativa
do esgotamento de mais uma das tantas epidemias que teve de enfrentar desde o
século 18. Infelizmente, a varíola foi uma presença nada estranha no cotidiano
das insalubres cidades brasileiras nos primórdios do século 20.
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