Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A EPIDEMIA DE VARÍOLA EM RIO GRANDE

Revolta da Vacina no Rio de Janeiro entre 10 e 16 de novembro de 1904. Revista O Malho (1904) 

Desde a Antiguidade casos de varíola foram relatados na África e na Ásia constituindo-se num flagelo para a humanidade. Conforme a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) acredita-se que a varíola tenha surgido há mais de três mil anos, provavelmente na Índia ou no Egito. Na face do faraó Ramsés 2º foi encontrado marcas deixadas pela doença. Em algumas culturas antigas, a letalidade da varíola era tamanha entre as crianças que estas só recebiam nomes se sobrevivessem a ela. No decorrer do século 18, a doença matava um recém-nascido em cada dez na Suécia e na França, e um em cada sete na Rússia. Além do medo da morte, os enfermos ainda tinham que enfrentar a possibilidade de carregar cicatrizes profundas, principalmente no rosto, ou mesmo de perder a visão – no Vietnã de 1898, 95% dos adolescentes carregavam marcas da doença, e nove em cada dez casos de cegueira eram atribuídos às complicações decorrentes da moléstia. A varíola era uma doença infectocontagiosa, exclusiva do homem de surgimento e desenvolvimento repentinos e causada pelo Orthopoxvírus variolae, um dos maiores vírus conhecidos e que é extremamente resistente aos agentes físicos externos, como, por exemplo, variações de umidade e temperatura. Conforme matéria da Fiocruz, a vacinação em massa permitiu que o número de casos no mundo em cada ano caísse de 50 milhões, em 1950, para 15 milhões em 1967. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde lançou um plano intenso para a completa erradicação da doença. O programa foi um sucesso e em 1977 registrou-se o último caso natural da doença na Somália seguido de outro ocorrido em Londres, em 1978, devido a um acidente de laboratório. Em 1980, após inúmeras verificações, a OMS finalmente declarou a doença extinta e pediu para que os laboratórios do mundo destruíssem suas amostras de vírus. Foram atendidos por quase todos, menos pelo laboratório do Centro de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta, EUA e pelo Instituto Vector da Rússia, últimas instituições com estoques declarados do O. variolae.
BRASIL/RIO GRANDE
No Brasil a varíola era também denominada de ‘bexiga’ (varíola major) e provocou muitas perdas humanas nos últimos séculos. O uso da vacina contra a varíola foi obra do inglês Edward Jenner em 1796, representando no maior avanço para evitar o contágio. A varíola é uma doença infecciosa que devastou comunidades em todo o planeta, caracterizando-se por quadros clínicos severos com uma letalidade de 30% dos casos e um contágio através das secreções das vias respiratórias e lesões da pele de pacientes. Apesar dos bons resultados da vacinação em outros países, a resistência da população brasileira caracterizou as tentativas das autoridades de promoverem a vacinação em massa. No ano de 1904, o Rio de Janeiro foi abalado pela Revolta da Vacina, quando populares promoveram graves distúrbios resistindo à determinação da obrigatoriedade da vacinação, resultando em várias mortes e inúmeras prisões.
         Em Rio Grande, o uso da vacina também era motivo de discussão nos jornais e na comunidade, com acentuadas posições contrárias à vacina. Nos anos de 1904-1905 a cidade do Rio Grande foi o palco de uma epidemia de varíola que causou muitas mortes na população local. Esta epidemia constituiu-se num momento de reflexão e de mudança nas atitudes médico-sanitárias no Brasil devido a sua intensidade. As concepções higienizadoras ligadas à vacinação e mudanças na organização urbana ficaram em destaque, especialmente no Rio de Janeiro, onde ocorreu um grave confronto entre os populares e o poder público, quando da Revolta da Vacina, episódio referencial nas práticas de prevenção de doenças com a obrigação da vacinação em massa e o combate aos focos epidêmicos. Frente às epidemias a modernidade burguesa evidenciava fragilidade. As medidas e discursos saneadores dos males epidêmicos contrastava com a desorganização urbana e a miséria de considerável parcela da população. Benvindo ao século XX ainda era uma construção distante em nível da história da sociedade local. Os medos coletivos associados à presença ameaçadora de epidemias mostram a fragilidade que transcende as políticas médico-higienistas, mas que evidenciam as carências de infraestrutura urbana e as desigualdades sociais. Porém, a cidade em 1904 começou a ser abalada pela epidemia de varíola que ceifou 101 vidas. Era apenas o início de uma devastadora epidemia. Entre maio e julho de 1905 a varíola intensificou a sua ação e somente no mês de julho 104 pessoas morreram e até o final do ano foram 492 óbitos, numa população de cerca de 30.000 mil habitantes.
O Echo do Sul, um jornal que sistematicamente criticava a intendência municipal na sua política de saúde pública e no combate as epidemias, afirmou em sua edição de 12 de junho de 1905: “Quando se esperava o declínio espontâneo das epidemias que balanceiam a alma rio-grandense, eis que os elementos de destruição recrudescem assustadoramente, à sombra da revoltante indiferença de todos quantos tem a obrigação imperiosa de zelar pela saúde pública! É tétrico, horrível e inenarrável o que se passa! Enquanto traçamos estas linhas, por entre as comoções que a piedade nos desperta, quantas lágrimas, quantos suspiros doloríssimos, quantas dores, quanto luto vai por esse Rio Grande desolado!”
         O desespero já estava expresso em janeiro daquele ano, quando a população apelou à intervenção divina para erradicar o sofrimento instalado. Foi organizada uma procissão que saiu da Igreja Matriz de São Pedro: “...haverá na próxima sexta-feira, uma procissão de preces para que a Misericórdia Divina se compadeça desta população flagelada pela varíola, que tem ceifado tantas vidas preciosas e enlutado inúmeras famílias. O préstito religioso se deslocará da igreja Matriz, às 5 horas da tarde, figurando neles os andores do Coração de Jesus e de N.S. do Rosário, este carregado pelos respectivos irmãos e aqueles pelas zeladoras do Apostolado da Oração” (Echo do Sul, 31/01/1905).
         A falta de higiene urbana era um problema grave, especialmente durante a epidemia quando as roupas e pertences dos doentes deveriam ser incinerados para evitar o intenso contágio provocado pela doença. “As carroças que fazem o serviço de remoção escolheram atualmente para despejo do lixo um lodaçal existente no fim da rua Zalony, além da antiga praça das carretas. Os resultados dessa imprudência far-se-ão sentir inevitavelmente no futuro. Condenada pela ciência a prática de aterrar ruas com lixo, ela não devia ser mantida, máximo numa situação sanitária deplorável como a que atravessamos” (Echo do Sul, 07/05/1905).
       Além da precária higiene, da existência dos cortiços insalubres no centro e na periferia, pela falta de uma ação saneadora por parte dos agentes da saúde pública municipal, outro fator levou a proliferação tão acentuada da varíola na cidade. Se quase 500 pessoas morreram neste ano, o número das que desenvolveram a doença chegou a patamares muito maiores abalando o funcionamento normal da cidade e desencadeando o clima generalizado de medo característico na trajetória da humanidade quando da eclosão das epidemias.
         Há pouco mais de um século a cidade do Rio Grande passava por momentos dramáticos, na expectativa do esgotamento de mais uma das tantas epidemias que teve de enfrentar desde o século 18. Infelizmente, a varíola foi uma presença nada estranha no cotidiano das insalubres cidades brasileiras nos primórdios do século 20. 

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