Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

OCUPAÇÃO ESPANHOLA

Forte de Sant’Anna do Estreito (desaparecida em 1763), fortificação mandada construir por Silva Paes para garantir a defesa terrestre de Rio Grande. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 


         O ano de 1763 é um referencial extremamente significativo para a atual cidade do Rio Grande. O primeiro governo civil (com a Câmara Municipal do Rio Grande instalada em 1751) que tinha jurisdição sobre todo o Rio Grande do Sul português, não mais voltaria a sua antiga condição administrativa após a retomada dos espanhóis. A dispersão da população pelo Continente e a perda de espaço político será uma das consequências desta ocupação. Poucas cidades brasileiras passaram pela experiência histórica de pertencerem a duas nacionalidades. Durante 13 anos, entre 1763 e 1776, a Vila do Rio Grande de São Pedro passou ao controle da Coroa Espanhola tendo por rei Carlos III. Fundada em 1737 pelo Brigadeiro José da Silva Paes, Rio Grande teve sua ocupação questionada por hispano-platinos desde o seu surgimento e transformou-se num dos espaços mais disputados no conflito luso-espanhol no século 18.
        No mês de abril de 1763 ocorreu a ocupação espanhola da Vila que foi retomada pelos portugueses em abril de 1776. Os dois eventos consistem em momentos exponenciais e dramáticos que definiram o projeto civilizatório luso-brasileiro no Rio Grande do Sul. A manutenção da presença espanhola poderia ter lançado a atual fronteira com o Uruguai, no Chui, pelo menos duzentos quilômetros ao norte. A ocupação espanhola e todas as atuações épicas ligadas à retomada portuguesa constituem episódios de destaque no cenário da história militar brasileira e nos desdobramentos geopolíticos de constituição do Brasil nação.
 OS ESPANHÓIS EM RIO GRANDE
O avanço das tropas espanholas sobre as fortificações de Santa Teresa e São Miguel, teve como resultado a derrocada da estratégia lusitana em deter um possível ataque do Governador Cevallos à Vila do Rio Grande de São Pedro. A rendição e também fuga dos soldados trouxeram a esta Vila, cenas de pânico e desespero, conforme o relato da historiadora Maria Luiza Bertulini Queiroz no livro A Vila do Rio Grande de São Pedro.
 “A Vila do Rio Grande, ao findar a década de cinquenta (1750), estava completamente aberta ao inimigo: o forte do Estreito (Santa Ana), que fora construído para bloquear o avanço sobre a península, estava completamente soterrado, e o do Porto (Jesus, Maria José), em ruínas. Essa situação existia, desde o início da década, e nenhuma obra de fortificação foi feita para modificá-la. (...) A Vila do Rio Grande era, naqueles dias, um local aberto e indefensável, por isso Gomes Freire projetou a sua linha de defesa para a Angustura de Castilhos, caminho obrigatório, naquela época, entre o canal e o Prata, e em maio de 1762 determinou ao Coronel Tomás Luis Osório a construção de um forte nesse local.
Diante da visível possibilidade de perder a Vila do Rio Grande e todo o seu território sul, o Governo do Rio de Janeiro enviou instruções a Osório autorizando a retirada para a Vila, caso o avanço do inimigo fosse insustentável, e ao Governador Madureira determinou a evacuação da Vila com antecedência, de modo a garantir a integridade física das pessoas, dos bens de particulares e da Fazenda Real. A linha de defesa passaria a ser, então, na margem do norte do canal. A retirada, de 20 a 24 de abril, foi então desastrosa. No porto havia apenas duas embarcações pequenas e algumas canoas, totalmente insuficientes para a transferência de armamentos, mercadorias e centenas de pessoas; a travessia era longa, e dificultada pela ação adversa dos ventos. A força das armas e a força do dinheiro garantiam a prioridade para os interesses da Coroa e das pessoas abastadas. Contudo, toda a ação resultou num grande fracasso.
O início da retirada coincidiu com a chegada dos soldados e paisanos que deixaram o Forte de Santa Teresa na véspera da rendição. A partir daí, segundo as testemunhas, o pânico existente juntou-se o desespero, miséria e vandalismo desses homens – dragões e paisanos – que ‘embebedaram-se com muito vinho e aguardente que havia nos armazéns e tavernas’, e cometeram ‘as maiores hostilidade com os moradores de um e outro sexo, roubando a uns e maltratando a outros com injúrias e crueldades’, violentando e sequestrando mulheres. A fome e a miséria dos soldados e colonos do Rio Grande teriam ditado seus atos. Os armazéns Reais foram, imediatamente, saqueados. Soldados armados obrigaram o Almoxarife a abrir-lhes as portas, ‘dizendo se queriam vestir por se acharem rotos e nus’. O armazém de farinha foi aberto por pessoas do povo, ‘a maior parte dela casais das ilhas’, que o fiel encontrou já ‘ensacando a dita farinha’, quando foi defendê-lo.
Nas lojas de comércio, vinho, aguardente, fumo e açúcar foram consumidos ou espalhados pela Vila com grande participação dos negros. As fazendas e mercadorias de uso pessoal foram alvo de soldados e civis, tanto homens como mulheres, e alguns comerciantes, tendo-as já perdidas, fizeram pessoalmente a sua distribuição. Sempre com o pretexto de nada deixarem aos inimigos, ‘tanto solados como paisanos e negros pegavam no que achavam pelas casas e quebravam o que dentro delas achavam’. Alguns soldados bêbados entraram a cavalo na Matriz de São Pedro e de lá saíram vestidos com as Opas da Confraria do Santíssimo. Muitos objetos sagrados, de grande valor material, teriam sido roubados então, mas foram recuperados aos poucos, pelos mais devotos na trilha seguida pelos fugitivos. O Vaso do Sacrário, que na ocasião foi dado também como roubado, foi visto pelo Capitão Antônio Pinto Carneiro quando foi à Vila conferenciar com Cevallos dentro da mesma Matriz, sendo usado para dar comunhão aos fiéis que lá se encontravam. Ainda no dia 23 de abril, véspera de chegada dos espanhóis, às três da tarde achava-se ‘a maior parte dos povos pelas praias e já todas as casas destruídas’.
Os acontecimentos da parte do Norte não foram diferentes daqueles da Vila; repetem-se os roubos, as violências contra as pessoas e as propriedades. Os poucos armamentos trazidos da Vila (cinco peças pequenas e dois barris de pólvora) ficaram abandonados, e o que não estragou com a água acabou em mãos dos invasores.
O Governador iniciou a retirada para Viamão. Diante de sua atitude, ‘se desanimou inteiramente todo o Povo e se retirou cada um para onde pode deixando quase tudo o que tinham salvado para esta parte na praia e desamparando inteiramente aquela barreira na maior consternação e desordem que se pode considerar. A marcha tinha que ser feita, obrigatoriamente, a pé, porque os cavalos da região foram tomados pelos soldados e pelos ladrões. O resultado foi que ‘muitas pessoas chegaram a falecer por esses campos de pura necessidade e miséria que experimentaram na falta do necessário; inclusive crianças morreram’.
Segundo Miguel Lopes de Toledo, capataz das carretas e boiadas da Coroa, feito prisioneiro em Castilhos e trazido pelos espanhóis para a Vila do Rio Grande, esses encontraram ‘pessoas desamparadas’ na parte do Norte, ‘que ali ficaram por falta de condução, que com fogos e tiros faziam sinais aos mesmos inimigos para que os fossem tomar por se acharem ali morrendo de fome’. A fronteira não foi organizada militarmente, como determinara o governo do Rio de Janeiro, e os espanhóis, vinte dias depois de terem tomado a Vila, puderam atravessar o canal e marchar três léguas rumo ao Norte.
A sede do governo português foi estabelecida na Capela de Viamão, onde se instalou também a Câmara da Vila do Rio Grande de São Pedro, que manteve esta denominação até a transferência oficial da capital para Porto dos Casais, em julho de 1773”.

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