Forte de Sant’Anna do Estreito (desaparecida em 1763), fortificação mandada construir por Silva Paes para garantir a defesa terrestre de Rio Grande. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
O ano de 1763 é um referencial extremamente
significativo para a atual cidade do Rio Grande. O primeiro governo civil (com
a Câmara Municipal do Rio Grande instalada em 1751) que tinha jurisdição sobre
todo o Rio Grande do Sul português, não mais voltaria a sua antiga condição
administrativa após a retomada dos espanhóis. A dispersão da população pelo
Continente e a perda de espaço político será uma das consequências desta ocupação.
Poucas cidades brasileiras passaram pela experiência histórica de pertencerem a
duas nacionalidades. Durante 13 anos, entre 1763 e 1776, a Vila do Rio Grande
de São Pedro passou ao controle da Coroa Espanhola tendo por rei Carlos III.
Fundada em 1737 pelo Brigadeiro José da Silva Paes, Rio Grande teve sua
ocupação questionada por hispano-platinos desde o seu surgimento e
transformou-se num dos espaços mais disputados no conflito luso-espanhol no
século 18.
No mês de abril de 1763 ocorreu a ocupação
espanhola da Vila que foi retomada pelos portugueses em abril de 1776. Os dois
eventos consistem em momentos exponenciais e dramáticos que definiram o projeto
civilizatório luso-brasileiro no Rio Grande do Sul. A manutenção da presença
espanhola poderia ter lançado a atual fronteira com o Uruguai, no Chui, pelo
menos duzentos quilômetros ao norte. A ocupação espanhola e todas as atuações
épicas ligadas à retomada portuguesa constituem episódios de destaque no
cenário da história militar brasileira e nos desdobramentos geopolíticos de
constituição do Brasil nação.
O avanço das
tropas espanholas sobre as fortificações de Santa Teresa e São Miguel, teve
como resultado a derrocada da estratégia lusitana em deter um possível ataque do
Governador Cevallos à Vila do Rio Grande de São Pedro. A rendição e também fuga
dos soldados trouxeram a esta Vila, cenas de pânico e desespero, conforme o
relato da historiadora Maria Luiza Bertulini Queiroz no livro A Vila do Rio
Grande de São Pedro.
“A Vila do Rio Grande, ao findar a década de cinquenta
(1750), estava completamente aberta ao inimigo: o forte do Estreito (Santa
Ana), que fora construído para bloquear o avanço sobre a península, estava
completamente soterrado, e o do Porto (Jesus, Maria José), em ruínas. Essa
situação existia, desde o início da década, e nenhuma obra de fortificação foi
feita para modificá-la. (...) A Vila do Rio Grande era, naqueles dias, um local
aberto e indefensável, por isso Gomes Freire projetou a sua linha de defesa
para a Angustura de Castilhos, caminho obrigatório, naquela época, entre o
canal e o Prata, e em maio de 1762 determinou ao Coronel Tomás Luis Osório a
construção de um forte nesse local.
Diante da
visível possibilidade de perder a Vila do Rio Grande e todo o seu território
sul, o Governo do Rio de Janeiro enviou instruções a Osório autorizando a
retirada para a Vila, caso o avanço do inimigo fosse insustentável, e ao
Governador Madureira determinou a evacuação da Vila com antecedência, de modo a
garantir a integridade física das pessoas, dos bens de particulares e da
Fazenda Real. A linha de defesa passaria a ser, então, na margem do norte do
canal. A retirada, de 20 a 24 de abril, foi então desastrosa. No porto havia
apenas duas embarcações pequenas e algumas canoas, totalmente insuficientes
para a transferência de armamentos, mercadorias e centenas de pessoas; a
travessia era longa, e dificultada pela ação adversa dos ventos. A força das
armas e a força do dinheiro garantiam a prioridade para os interesses da Coroa
e das pessoas abastadas. Contudo, toda a ação resultou num grande fracasso.
O início da
retirada coincidiu com a chegada dos soldados e paisanos que deixaram o Forte
de Santa Teresa na véspera da rendição. A partir daí, segundo as testemunhas, o
pânico existente juntou-se o desespero, miséria e vandalismo desses homens –
dragões e paisanos – que ‘embebedaram-se com muito vinho e aguardente que havia
nos armazéns e tavernas’, e cometeram ‘as maiores hostilidade com os moradores
de um e outro sexo, roubando a uns e maltratando a outros com injúrias e
crueldades’, violentando e sequestrando mulheres. A fome e a miséria dos
soldados e colonos do Rio Grande teriam ditado seus atos. Os armazéns Reais
foram, imediatamente, saqueados. Soldados armados obrigaram o Almoxarife a
abrir-lhes as portas, ‘dizendo se queriam vestir por se acharem rotos e nus’. O
armazém de farinha foi aberto por pessoas do povo, ‘a maior parte dela casais
das ilhas’, que o fiel encontrou já ‘ensacando a dita farinha’, quando foi
defendê-lo.
Nas lojas de
comércio, vinho, aguardente, fumo e açúcar foram consumidos ou espalhados pela
Vila com grande participação dos negros. As fazendas e mercadorias de uso
pessoal foram alvo de soldados e civis, tanto homens como mulheres, e alguns
comerciantes, tendo-as já perdidas, fizeram pessoalmente a sua distribuição. Sempre
com o pretexto de nada deixarem aos inimigos, ‘tanto solados como paisanos e
negros pegavam no que achavam pelas casas e quebravam o que dentro delas
achavam’. Alguns soldados bêbados entraram a cavalo na Matriz de São Pedro e de
lá saíram vestidos com as Opas da Confraria do Santíssimo. Muitos objetos
sagrados, de grande valor material, teriam sido roubados então, mas foram
recuperados aos poucos, pelos mais devotos na trilha seguida pelos fugitivos. O
Vaso do Sacrário, que na ocasião foi dado também como roubado, foi visto
pelo Capitão Antônio Pinto Carneiro quando foi à Vila conferenciar com Cevallos
dentro da mesma Matriz, sendo usado para dar comunhão aos fiéis que lá se
encontravam. Ainda no dia 23 de abril, véspera de chegada dos espanhóis, às
três da tarde achava-se ‘a maior parte dos povos pelas praias e já todas as
casas destruídas’.
Os
acontecimentos da parte do Norte não foram diferentes daqueles da Vila; repetem-se
os roubos, as violências contra as pessoas e as propriedades. Os poucos
armamentos trazidos da Vila (cinco peças pequenas e dois barris de pólvora)
ficaram abandonados, e o que não estragou com a água acabou em mãos dos
invasores.
O Governador
iniciou a retirada para Viamão. Diante de sua atitude, ‘se desanimou
inteiramente todo o Povo e se retirou cada um para onde pode deixando quase
tudo o que tinham salvado para esta parte na praia e desamparando inteiramente
aquela barreira na maior consternação e desordem que se pode considerar. A
marcha tinha que ser feita, obrigatoriamente, a pé, porque os cavalos da região
foram tomados pelos soldados e pelos ladrões. O resultado foi que ‘muitas
pessoas chegaram a falecer por esses campos de pura necessidade e miséria que
experimentaram na falta do necessário; inclusive crianças morreram’.
Segundo
Miguel Lopes de Toledo, capataz das carretas e boiadas da Coroa, feito
prisioneiro em Castilhos e trazido pelos espanhóis para a Vila do Rio Grande,
esses encontraram ‘pessoas desamparadas’ na parte do Norte, ‘que ali ficaram
por falta de condução, que com fogos e tiros faziam sinais aos mesmos inimigos
para que os fossem tomar por se acharem ali morrendo de fome’. A fronteira não
foi organizada militarmente, como determinara o governo do Rio de Janeiro, e os
espanhóis, vinte dias depois de terem tomado a Vila, puderam atravessar o canal
e marchar três léguas rumo ao Norte.
A sede do
governo português foi estabelecida na Capela de Viamão, onde se instalou também
a Câmara da Vila do Rio Grande de São Pedro, que manteve esta denominação até a
transferência oficial da capital para Porto dos Casais, em julho de 1773”.
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