Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

NAS AREIAS DO TEMPO A ORIGEM PAPAREIA

Areia tomando quase toda a Praça do Mercado (atual Xavier Ferreira) em 1865 quando da visita de D. Pedro II. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.  


A cidade do Rio Grande foi edificada numa formação geológica arenosa dinâmica que tem poucos milênios. Em documentos oficiais e também nos escritos dos viajantes estrangeiros que estiveram em Rio Grande, o movimento das areias e seu relacionamento com a cidade foi muitas vezes destacado. Algumas destas passagens serão a seguir citadas para caracterizar a ação antrópica enquanto promovedora destes problemas e também como construtora de soluções na tentativa de domesticar e propiciar o convívio na fisiografia da Restinga do Rio Grande. Desde os primórdios da ocupação militar e civil, a luta contra o vento, as chuvas, o deslocamento da areia e a falta de material de construção estão presentes nos relatos oficiais ou de viajantes.
Uma das referências mais antigas sobre o deslocamento das dunas dos arredores da cidade, foi relatado em carta do vigário de Rio Grande, Manoel Francisco da Silva, datada de janeiro de 1755 a Gomes Freire de Andrade na qual informa das precárias condições da principal igreja da Vila. “Mas pela pouca firmeza da edificação e pela continuada invasão das areias, e tempestades deste ano, se tem posto aquele sítio indecente, incapaz de se poder conservar o templo de Deus e tanto assim que na noite de 25 para 26 deste mês, em que houve a rigorosa tormenta e tempestade V. Exa. Muito bem viu e presenciou, indo eu para dizer missa ao povo, o não pude conseguir, porque achei a porta coberta de areia até o meio (...) E indo outro dia, que era Domingo para dizer missa o não pude também conseguir pela muita e continuada areia que vertia do telhado”.
O engenheiro militar Sebastião Betâmio registrou em 1780: “Dirão que o terreno é indigno pelas muitas areias que formam combros formidáveis e que estes cada vez mais se vão aproximando à vila, sepultando edifícios dela, e que não duvido sucede, e sucederão se não houver algum trabalho para os impedir”.
Aires de Casal, em seu livro Corografia Brasílica (1817) afirmou: “(...) as ruas de areia finíssima (...) onde anda à vontade do vento e chega a sepultar casas pequenas. Na estação das ventanias nada se come sem uma porção deste sal (...)”.
Antônio José Gonçalves Chaves, em suas Memórias ecônomo-políticas (1823), fez os seguintes apontamentos: “As areias no Rio Grande fazem continuamente uma terrível invasão em toda parte da Vila (...) e tem submergido ruas inteiras. Pelos exames que procedemos conhecemos que 27 propriedades que em 1811 pagaram de décima 67$564 já em 1816 não existiam por terem sido submergidas pelas areias. Todas estas casas eram situadas nas ruas Direita e da Praia desde a Igreja para Oeste”.
Cronistas que estiveram em Rio Grande no século XIX deixaram relatos sobre as condições urbanas encontradas. John Luccock destacou em 1809 que “a fileira principal de casas corre em direção leste-oeste, gozando de suas janelas de rótula a perspectiva de uma ilha extensa, chata e despida, do outro lado de um canal de cerca de seiscentas jardas de largura. Por trás dessa fileira de casas, que é realmente bonita e graciosa, fica uma rua de cabanas pequeninas e baixas, feitas de barro e cobertas de palha, habitações das classes mais baixas. Nesse lugar, aquelas acumulações de areia de que já falamos, freqüentemente se dão, e, durante a minha estada em São Pedro, muitas dessas casas foram quase soterradas e muito danificadas. Se não fosse essa barreira, as casas melhores estariam expostas ao mesmo destino”.[1]
Em 1820 Auguste de Saint-Hilaire deixou uma descrição do centro urbano. Observou que a Vila do Rio Grande de São Pedro estendia-se paralelamente ao canal, de leste para oeste, compondo-se de “seis ruas muito desiguais, atravessadas por outras excessivamente estreitas, denominadas becos”. A mais longa, chamada rua da Praia (atual Marechal Floriano), se localiza a margem do canal; a que se segue é um pouco menor, as outras quatro vão decrescendo em tamanho, à medida que se afastam desta última, a mais comprida dentre elas, e que não excede a metade da Rua da Praia. Como todas essas ruas começam no mesmo ponto, resulta pelos seus comprimentos e respectivas posições, que a cidade apresenta, em seu conjunto, a forma aproximada de um triângulo alongado com base a leste. Ele ainda destaca que a Rua da Praia é larga, mas não perfeitamente reta; edificada de casas cobertas de telhas, construídas com tijolo, possuindo janelas envidraçadas; a maior parte delas era de um andar, várias com sacadas de ferro. Nessa rua que estavam situadas quase “todas as lojas e a maioria das vendas, umas e outras igualmente bem sortidas. No resto da cidade, não se contam pouco mais de seis a oito casas assobradadas, e as quatro últimas ruas compõem-se quase unicamente de miseráveis casebres de teto bastante alto, porém conservados, pequenos, construídos de pau-a-pique e onde moram pessoas pobres, operários e pescadores. Nas duas ruas principais, vêem-se lajes na frente das casas, entretanto nenhuma delas é calçada; enterram-se aí os pés na areia, o que dificulta o caminhar”.[2] Saint-Hilaire espantou-se com o soterramento de casas... “A oeste e a sudoeste, um areal de finura extrema que fatiga a vista pela sua cor esbranquiçada, forma montículos que avançam até as casas situadas atrás da cidade, elevando-se tanto que ameaçam aterrá-las a cada instante. Vi negros ocupados em desentulhar os arredores das casas de seus donos, que me informaram serem obrigados a repetir sem descanso esse trabalho”.
Estes escritos nos dão pistas para entender a construção histórica do termo Papareia. Antes dos calçamentos e da expansão urbana que se intensifica na segunda metade do século 19, a areia marcou profundamente os escritos daqueles que aqui estiveram.
  
[1] LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, p. 117.
[2] SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro,  1987, p. 74.

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