Capa da edição de 1817 do livro de Aires de Casal. |
O padre
Manuel Aires de Casal nasceu em 1754 em Pedrógão, Portugal. Permaneceu no
Brasil até 1821 quando retornou para Portugal com a Família Real, vindo a
falecer no mesmo ano. Ele exerceu o cargo de capelão da Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro e atuou como presbítero secular no Ceará. É lembrado pela historiografia por ter sido o
primeiro a imprimir a Carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento a relatar
o descobrimento do Brasil em 1500.
Aires de Casal é o autor
do livro Corografia Brasílica, publicado em 1817 pela Imprensa Régia no Rio de
Janeiro e dedicado a D. João VI. Este é o “primeiro livro científico impresso
no Brasil” e o modelo de escrita fundamentou-se na Geografia Clássica, com
longas descrições da hidrografia, relevo, populações indígenas (inseridos no
capítulo sobre “zoologia”), divisão administrativa, aspectos históricos, enfim,
uma miscelânea de informações.
A longevidade deste
livro, que ja se aproxima dos dois séculos de sua publicação, constitui um
fator de atração a mais para os leitores que no presente podem observar o
vocabulário utilizado para descrever os atuais estados brasileiros. No Rio
Grande do Sul as informações são ainda mais interessantes por inserirem a atual
República Oriental do Uruguai como uma continuidade do território rio-grandense
(na época, o atual Uruguai estava ocupado por tropas brasileiras, situação que
perduraria até a sua independência em 1828).
Aires de Casal faz uma
narração como se conhecesse os lugares relatados. Porém, ele foi um compilador
de livros e documentos e não conheceu a maioria dos locais que faz referência. Além
disso, um número elevado de erros cronológicos, espaciais e factuais são facilmente
identificados. De qualquer forma, o livro é uma viagem ao que se conhecia do
Brasil do início do século XIX e do olhar que se tinha do Rio Grande do Sul.
Foram compiladas alguns
passagens relacionadas à Vila do Rio Grande e sua área de abrangência administrativa
na década de 1810. Para se ter uma ideia desta área, há referências que
englobam entre Jaguarão e a Lagoa do Peixe. Além da áspera abordagem referente à
Rio Grande, se observa uma das mais antigas referências a areia e aos
‘papareias’: “nada se come sem uma
porção deste sal”.
“As vilas
principais são: Porto Alegre, São Pedro e Montevidéu. A medíocre, comerciante
Vila de São Pedro, vantajosamente situada na extremidade duma língua de terra,
que se prolonga entre o saco da Mangueira ao sul, e uma baía ao noroeste, tem
uma igreja paroquial, dedicada ao Apóstolo, que lhe dá o nome, e duas ordens
Terceiras, uma de S. Francisco, outra do Carmo. As casas são geralmente
mesquinhas, e as ruas de areia finíssima, assim como o contorno, onde anda à
vontade o vento, e chega a sepultar casas pequenas. Na estação das ventanias
nada se come sem uma porção deste sal. Não é nem pode ser fortificada. Esta
vila, que teve princípio obra de uma légua ao sudoeste no sítio do Estreito,
foi mudada por Gomes Freire de Andrade entre os anos de 1747 e 1750; e capital
até 1763. O calor é aqui intenso. Os gatos fogem dos ratos que são
multiplicadíssimos e grandes; mas tem um formidável inimigo nos cães. Sobre a
margem oriental do rio, em frente de São Pedro, está o considerável e
florescente Arraial de São José, com uma ermida desta invocação. É o porto
daquela vila. Em 1814, saíram dele 333 embarcações carregadas de trigo,
courama, carne seca, queijos e outros objetos. Obra de 6 léguas ao sul de São
Pedro está o Arraial de Povo Novo, ornado com uma ermida de Nossa Senhora das
Necessidades: seus moradores são açoritas e lavradores.
Os habitadores da península formada pelo
oceano e Lagoa dos Patos estão repartidos em três freguesias: a de Nossa
Senhora da Conceição do Estreito, para os meridionais; a de S. Luiz de
Mostardas, para os centrais; a de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, para os
norteiros. Os que vivem ao poente da Lagoa dos Patos e da Mirim formam a
Freguesia do Espírito Santo, junto à margem do Jaguarão; a de Nossa Senhora da
Conceição de Piratini, pouco arredada deste rio; a de S. Francisco de Paula,
perto do Rio de S. Gonçalo, e obra de 4 léguas acima da sua embocadura no sítio
de Pelotas; a de Nossa Senhora da Conceição de Canguçu, na vizinhança do Rio
Camaquã; e a de São Sebastião de Bagé, perto da origem do mesmo Camaquã. Todas
estas freguesias são do Bispado do Rio de Janeiro.
A
Lagoa Mangueira, que tem 23 léguas de comprido, e quase sempre uma de largo,
está prolongada no intervalo, que media entre a costa e a Lagoa Mirim, para
onde deságua na extremidade setentrional por um esgotadouro chamado Arroio
Taim. Ao norte dele está a Lagoa Cajuba, com 6 milhas de comprimento.
Na península, que media entre a costa e a Lagoa dos Patos, e cuja largura é de
2 até 6 léguas, há grande número de lagoas ordinariamente pequenas, das quais
umas deságuam para aquela outra, as mais para o Oceano. Entre as que se escoam
para o poente, nota-se (na parte meridional) a das Capivaras, na qual deságua
um arroio, de água pura e limpa, que rebenta com força admirável, e é a melhor
fonte da península, que, todavia não é falta de águas potáveis. No lado
oriental nota-se a Lagoa de Mostardas, mais conhecida pelo nome de Lagoa do
Peixe, com 9 léguas de comprimento, pouca largura, 5 até 8 palmos de fundo,
prolongada com o mar, para onde deságua por um sangradouro, que a natureza
abre, e entope anualmente, pelo qual entra imensidade de várias espécies de
pescado sendo a mais numerosa a denominada Miragaia com figura de bacalhau”
(In: CASAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica ou Relação
Histórico-Geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Editora da USP/Itatiaia,
1976).
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