Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 19 de outubro de 2019

AÇORIANOS NOS PRIMÓRDIOS DO RIO GRANDE

Planta do litoral do Rio Grande do Sul em 1726. Biblioteca Nacional de Portugal.


         O ano de 1752 é o referencial cronológico que assinala o desencadear da imigração açoriana para o Rio Grande do Sul a partir de sua chegada ao porto do Rio Grande de São Pedro. Em anos anteriores, açorianos já desembarcaram no cais da então Vila do Rio Grande, porém a política dos casais se configurou em 1752 com a chegada de grande número de ilhéus. Este capítulo épico no povoamento do Rio Grande do Sul, acarretou no surgimento de várias cidades gaúchas e a difusão de hábitos alimentares, de linguajar, de práticas agrícolas, de adaptações arquitetônicas etc, expressos nas singularidades da cultura luso-açoriana. 

      Na Vila do Rio Grande de São Pedro, assim denominada administrativamente a partir de 1751, os açorianos tiveram um papel colonizatório essencial para o seu desenvolvimento urbano, demográfico e econômico. Desde janeiro de 1748 os casais açorianos começaram a desembarcar no porto do Desterro em Santa Catarina, porém à Vila do Rio Grande de São Pedro eles só chegaram na década seguinte. Em setembro de 1749 um espião espanhol esteve observando a Vila e constatou que nenhuma família havia chegado à ocupação portuguesa. A expectativa da vinda dos casais açorianos está contextualizada nas tratativas do Tratado de Madri, assinado em janeiro de 1750, quando a efetiva ocupação das terras, o uti possidetis, era o desafio que a Coroa de Portugal buscou enfrentar com um povoamento planejado com os ilhéus. A consolidação dos portos do Desterro, na Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande, na barra do Rio Grande, garantia o controle do litoral meridional, propiciando a expansão colonizatória lusa em direção ao oeste, à almejada região ocupada pelas Missões Jesuítico-Guaranis. 

     O deslocamento para Rio Grande ainda dependia, segundo o governador da Ilha de Santa Catarina Manuel Escudeiro em selecionar aqueles que ainda estivessem em condições de poder suportar um acréscimo de vários dias aos que já traziam de viagem e também em conseguir embarcações de pequeno calado capazes de transpor o porto do Rio Grande. O Conselho Ultramarino instruiu para que todas as embarcações que se destinassem ao Rio Grande fizessem escala em Santa Catarina para transportar os casais em condições. Esse transporte assistemático e possivelmente em grupos reduzidos dificulta uma conclusão de quantos casais vieram para Rio Grande. Conforme a historiadora Maria Luiza Queiroz (A Vila do Rio Grande de São Pedro), o primeiro assentamento de casais na Vila remonta a 22 de novembro de 1750, indicando uma pequena entrada neste ano. 

        Para Queiróz, a Vila do Rio Grande foi à porta de entrada da corrente açoriana que se deslocou da Ilha de Santa Catarina para o continente do Rio Grande. Atendendo ao objetivo principal de sua imigração, os casais deveriam ser deslocados em grupos para o interior e lá aguardar a ocasião para ocupar a região das Missões. Entretanto, a resistência indígena, já a partir de 1753, e a conseqüente Guerra Guaranítica, que se estendeu até 1756, tornaram impossível a concretização desses planos e determinaram à permanência da quase totalidade do contingente açoriano na própria Vila do Rio Grande. Possivelmente, entre 1752 e 1754, grupos de casais tenham apenas passado pela Vila, seguindo logo para o interior; nessa época Gomes Freire de Andrade fortificava três áreas, estrategicamente, importantes para manter acesso à região a ser incorporada: Santo Amaro, onde estabeleceu os armazéns de abastecimento do Exército; Rio Pardo, onde erguera o Forte de Jesus-Maria-José para garantir aquela fronteira; e o porto do Arraial de Viamão, base de manutenção dos outros dois pontos. O impulso da colonização açoriana está demarcado no ano de 1752, o que pode ser constatado nos batizados da população livre açoriana que em 1751 foi quatro registros e em 1752 passou para 42 registros. 

         A importância da imigração açoriana para a Vila do Rio Grande em termos demográficos foi excepcional. Ela representou um acréscimo, em menos de cinco anos, de pelo menos 1.273 pessoas adultas brancas (570 homens e 703 mulheres), a uma população que, incluindo todos os grupos raciais, na metade da década anterior, teria 1.400 almas. De imediato, estabeleceu-se um predomínio numérico do grupo sobre a população branca da vila e, possivelmente, também sobre o conjunto da população livre. A produção açoriana foi fundamental para afastar da Vila o espectro da fome, que a rondava desde a sua fundação. A população já não dependia apenas da carne e da importação de farinha para sobreviver, e podia contar com hortaliças, legumes e frutas que eram produzidos para o consumo interno. 

         Em relação ao lugar social dos açorianos na Vila do Rio Grande, o insignificante número de famílias açorianas que se tornaram proprietárias de escravos até abril de 1763 (invasão espanhola) significa claramente que nesta fase a mão-de-obra básica das pequenas propriedades – as chácaras ou sítios – que os casais açorianos partilharam com tios, primos, sogros, e outros casais, foi essencialmente livre, branca, açoriana; os açorianos constituíram a autêntica classe camponesa da sociedade rio-grandina deste período. 

          De acentuada relevância foi o povoamento da Vila do Rio Grande de São Pedro pelo contingente açoriano até 1763. Tanto que em abril deste ano, 76,3% dos casais da Vila eram açorianos. Porém, em outras localidades do Rio Grande do Sul, os açorianos ficaram abandonados do apoio estatal prometido. O drama épico da saída das ilhas e chegada ao Brasil persistiu nas décadas posteriores a sua chegada. O assentamento previsto na Provisão de 9 de agosto de 1747 foi protelado por décadas. Portugal neste período estava com a balança comercial deficitária. A ocupação do território missioneiro, a partir do previsto no Tratado de Madrid frustrou as expectativas dos casais pois a área continuou sobre controle da Coroa Espanhola. A economia mineradora no Brasil colonial apresentava queda na produção e a cotação internacional do açúcar era baixa. Os custos de manutenção das tropas e a reconstrução de Lisboa, que fora destruída pelo terremoto e maremoto de 1755, deixou deficitário o Erário Régio lusitano. Uma situação metropolitana e ultramarina complexa em que a colonização açoriana inseriu-se e que os colonos sentiram severamente os efeitos, inclusive com a dominação espanhola na Vila do Rio Grande. 

       Após a retomada lusitana e expulsão espanhola, durante os governos do brigadeiro Marcelino de Figueiredo (1769-1780) e do brigadeiro Sebastião da Veiga Cabral e Câmara (1780-1801) é que o povoamento açoriano que já havia se difundido mas que passou a ser organizado com legalização de terras em núcleos como Porto Alegre, Viamão, Osório, Mostardas, Santo Amaro, Cachoeira etc. Novas conjunturas e perspectivas abriam-se aos colonizadores dos Açores nas duas últimas décadas do século XVIII. Após a viagem marítima, o drama do abandono e do conflito com os espanhóis, novos desafios aguardavam os colonizadores açorianos nos primórdios do século XIX. 

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