O
acontecer histórico processa-se no espaço-tempo. No caso das Missões
jesuítico-guarani, o espaço refere-se a um território que hoje faz parte do
Paraguai, Argentina e Brasil. Como o espaço não é meramente físico, mas está
relacionado ao processo humano de construção de fronteiras, este espaço
histórico é indissociável do tempo pois a temporalidade é um fazer-se histórico
no espaço. Se o homem constrói o espaço deixando suas marcas materiais
(habitações, cemitérios etc) o tempo é o universo psicossocial cuja linguagem
se traduz em sonhos, fantasias e idéias. A temporalidade converte-se em signos,
em expressões múltiplas que demarcam a vida e a morte.
Falar do tempo é expressar o cotidiano, os
atos lógicos e ilógicos que figuram ao longo do dia. Estes atos são expressos
num meio concreto, que consiste em limites fixados por regras sociais e
necessidade de sobrevivência material, circundados por signos normatizadores do
comportamento. Estes signos normatizadores estavam presentes nas Missões
através da disciplina e ritualização do cotidiano dentro de princípios
cristãos.
A
Temporalidade Missioneira
Uma primeira aproximação do problema exige
pensar o universo psicossocial europeu
na transição Idade Média - Idade Moderna. O homem ibérico do século XVI,
refletindo a presença marcante da Igreja, que simbolizava a própria identidade
após as lutas de reconquista da Península frente à ocupação árabe, permanecia
ligado ao universo medieval: superstições, espiritualismo arraigado, devoção a
santos e relíquias, peregrinações e sobrenaturalismo.
No
contexto do Renascimento, da Reforma Protestante e da debilidade ético-moral
católica, foi criada a Companhia de Jesus, ordem religiosa de caráter reformista
e militantes (soldados de Cristo), cuja ética loyolana baseava-se no “salvar a
alma” através da militância religiosa e da obrigação de “viver no mundo”.
O
surgimento dos povoados missioneiros na primeira metade do século XVII, em
terras pertences à monarquia espanhola, desencadeou um processo civilizatório
junto aos indígenas guaranis, promovendo à formação de uma organização social
de caráter comunitário e católico, político-administrativamente vinculado aos
órgãos metropolitanos (Casa de Contratación e Conselho das Índias), coloniais
(Audiências, Vice-Reis, governadores, autoridades), clericais (superiores da
Companhia de Jesus e Igreja de Roma) e locais (Cabildo); prestando serviços
militares, pois os guaranis são súditos do Rei (pagando impostos sobre a
produção agropecuária e a exportação); promovendo a produção artística,
artesanal e técnica, segundo o imaginário da sociedade européia católica (diabo
x conversão).
Os
ofícios artesanais, o trabalho agrícola e as atividades nas Missões possuíam horários
fixos que somente eram alterados nas mudanças de estação. O despertar, a missa,
as refeições, o repouso noturno são seqüências de um ritmo disciplinador e
repetitivo. “El sol está ido y los indios descansam, esperando un nuevo día tan
igual al día anterior y tan igual en un pueblo como en otro, que sólo las
personas diversas y algún detalle pueden orientar la diferencia”. As
festividades religiosas eram momentos de ritualização de um cotidiano voltado à
dinâmica espiritual da moral cristã através das procissões, da música e canto,
da dança, de representações teatrais e devoções.
A
uniformidade e repetição das atividades e movimentos nos pueblos, promoviam um
ritmo que almejava o “uso perfeito do tempo”, um ritmo de trabalho e
cristianização, conduzido na atenção constante dos jesuítas. Este modelo de
uniformidade certamente deve ser relativizado (os apelos dos discursos
jesuíticos buscam uma certa prática social normatizadora), e a formação
missioneira, na dinâmica global e particularidades de cada povoado, edificou
seu ritmo a partir de arritmias frente ao modelo de uniformidade proposto no
século XVIII no livro sobre a disciplinarização da temporalidade. Estas
arritmias estão relacionadas à presença dos caraís-feiticeiros no século XVII e
pela persistente presença cultural dos guaranis nas Missões.
As
determinações do processo histórico europeu e platino, dinâmica em que as
Missões estão inseridas, propiciou um tempo para a conquista espiritual, para o
florescente desenvolvimento urbano e para a derrocada do projeto com decorrente
expulsão dos jesuítas e marginalização dos guaranis.
O
Sentido do Tempo
O ritmo temporal missioneiro cadenciava-se
pelo ritualismo cristão com todo o seu universo de representações e repressões.
A sistemática do trabalho, das atividades espirituais e artísticas impunha-se
enquanto disciplina ordenadora do espaço social.
A
Companhia de Jesus construiu ritualmente a temporalidade nas Missões recorrendo
às alegorias, representações, sobrenaturalismo, atividades cênicas, musicais,
festas religiosas, criando o pecado e propiciando o perdão ao guarani, estando
em sintonia com os princípios religiosos católicos ordenados pela Igreja e em
consonância com as Monarquias Ibéricas no contexto do Padroado na Idade
Moderna.
A
transição medieval-moderno foi um processo lento de sobrevivência de uma
mentalidade sensível às forças sobrenaturais. A repetição-imposição de um certo
comportamento cristão no cotidiano das Missões visava à doutrinação e ao
enquadramento do guarani às necessidades advindas da modernidade.
Uma
delimitação mais clara da temporalidade missioneira precisa levar em
consideração essa transição onde o recurso medieval através do pensamento
cruzadista, sobrenatural (intervenção divina na sociedade e na natureza; ação
de Deus, que guia e legitima a ação do Clero), a forte ritualização (símbolos,
relíquias) se fundiu com as necessidades advindas do moderno (trabalho e
produção sistematizada, geração de excedentes para comercialização, divisão
social do trabalho, incorporação de tecnologia). Ou seja, o imaginário
conservador, repressor e conversor do período medieval foi mantido - aquele
universo alegórico e discursivo no qual a Igreja erigiu o seu poder -, enquanto
outra faceta do medieval foi superada - a letargia produtiva. O moderno está
presente com sua sistemática e disciplina, com seu tempo matemático e mecânico.
O discurso recorre ao medieval, mas as motivações são da modernidade.
Livro em guarani "Do Bom Uso do Tempo", 1759. |
São Miguel das Missões. Demersay, 1846. |
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