Porto do Rio Grande em 1908

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domingo, 1 de julho de 2018

A NATUREZA DA TEMPORALIDADE NA EXPERIÊNCIA CIVILIZATÓRIA MISSIONEIRA


         O acontecer histórico processa-se no espaço-tempo. No caso das Missões jesuítico-guarani, o espaço refere-se a um território que hoje faz parte do Paraguai, Argentina e Brasil. Como o espaço não é meramente físico, mas está relacionado ao processo humano de construção de fronteiras, este espaço histórico é indissociável do tempo pois a temporalidade é um fazer-se histórico no espaço. Se o homem constrói o espaço deixando suas marcas materiais (habitações, cemitérios etc) o tempo é o universo psicossocial cuja linguagem se traduz em sonhos, fantasias e idéias. A temporalidade converte-se em signos, em expressões múltiplas que demarcam a vida e a morte.
Falar do tempo é expressar o cotidiano, os atos lógicos e ilógicos que figuram ao longo do dia. Estes atos são expressos num meio concreto, que consiste em limites fixados por regras sociais e necessidade de sobrevivência material, circundados por signos normatizadores do comportamento. Estes signos normatizadores estavam presentes nas Missões através da disciplina e ritualização do cotidiano dentro de princípios cristãos.

A Temporalidade Missioneira

Uma primeira aproximação do problema exige pensar o universo psicossocial  europeu na transição Idade Média - Idade Moderna. O homem ibérico do século XVI, refletindo a presença marcante da Igreja, que simbolizava a própria identidade após as lutas de reconquista da Península frente à ocupação árabe, permanecia ligado ao universo medieval: superstições, espiritualismo arraigado, devoção a santos e relíquias, peregrinações e sobrenaturalismo.
         No contexto do Renascimento, da Reforma Protestante e da debilidade ético-moral católica, foi criada a Companhia de Jesus, ordem religiosa de caráter reformista e militantes (soldados de Cristo), cuja ética loyolana baseava-se no “salvar a alma” através da militância religiosa e da obrigação de “viver no mundo”.
         O surgimento dos povoados missioneiros na primeira metade do século XVII, em terras pertences à monarquia espanhola, desencadeou um processo civilizatório junto aos indígenas guaranis, promovendo à formação de uma organização social de caráter comunitário e católico, político-administrativamente vinculado aos órgãos metropolitanos (Casa de Contratación e Conselho das Índias), coloniais (Audiências, Vice-Reis, governadores, autoridades), clericais (superiores da Companhia de Jesus e Igreja de Roma) e locais (Cabildo); prestando serviços militares, pois os guaranis são súditos do Rei (pagando impostos sobre a produção agropecuária e a exportação); promovendo a produção artística, artesanal e técnica, segundo o imaginário da sociedade européia católica (diabo x conversão).
         Os ofícios artesanais, o trabalho agrícola e as atividades nas Missões possuíam horários fixos que somente eram alterados nas mudanças de estação. O despertar, a missa, as refeições, o repouso noturno são seqüências de um ritmo disciplinador e repetitivo. “El sol está ido y los indios descansam, esperando un nuevo día tan igual al día anterior y tan igual en un pueblo como en otro, que sólo las personas diversas y algún detalle pueden orientar la diferencia”. As festividades religiosas eram momentos de ritualização de um cotidiano voltado à dinâmica espiritual da moral cristã através das procissões, da música e canto, da dança, de representações teatrais e devoções.
         A uniformidade e repetição das atividades e movimentos nos pueblos, promoviam um ritmo que almejava o “uso perfeito do tempo”, um ritmo de trabalho e cristianização, conduzido na atenção constante dos jesuítas. Este modelo de uniformidade certamente deve ser relativizado (os apelos dos discursos jesuíticos buscam uma certa prática social normatizadora), e a formação missioneira, na dinâmica global e particularidades de cada povoado, edificou seu ritmo a partir de arritmias frente ao modelo de uniformidade proposto no século XVIII no livro sobre a disciplinarização da temporalidade. Estas arritmias estão relacionadas à presença dos caraís-feiticeiros no século XVII e pela persistente presença cultural dos guaranis nas Missões.
         As determinações do processo histórico europeu e platino, dinâmica em que as Missões estão inseridas, propiciou um tempo para a conquista espiritual, para o florescente desenvolvimento urbano e para a derrocada do projeto com decorrente expulsão dos jesuítas e marginalização dos guaranis.

O Sentido do Tempo
        
O ritmo temporal missioneiro cadenciava-se pelo ritualismo cristão com todo o seu universo de representações e repressões. A sistemática do trabalho, das atividades espirituais e artísticas impunha-se enquanto disciplina ordenadora do espaço social.
         A Companhia de Jesus construiu ritualmente a temporalidade nas Missões recorrendo às alegorias, representações, sobrenaturalismo, atividades cênicas, musicais, festas religiosas, criando o pecado e propiciando o perdão ao guarani, estando em sintonia com os princípios religiosos católicos ordenados pela Igreja e em consonância com as Monarquias Ibéricas no contexto do Padroado na Idade Moderna.
         A transição medieval-moderno foi um processo lento de sobrevivência de uma mentalidade sensível às forças sobrenaturais. A repetição-imposição de um certo comportamento cristão no cotidiano das Missões visava à doutrinação e ao enquadramento do guarani às necessidades advindas da modernidade.
         Uma delimitação mais clara da temporalidade missioneira precisa levar em consideração essa transição onde o recurso medieval através do pensamento cruzadista, sobrenatural (intervenção divina na sociedade e na natureza; ação de Deus, que guia e legitima a ação do Clero), a forte ritualização (símbolos, relíquias) se fundiu com as necessidades advindas do moderno (trabalho e produção sistematizada, geração de excedentes para comercialização, divisão social do trabalho, incorporação de tecnologia). Ou seja, o imaginário conservador, repressor e conversor do período medieval foi mantido - aquele universo alegórico e discursivo no qual a Igreja erigiu o seu poder -, enquanto outra faceta do medieval foi superada - a letargia produtiva. O moderno está presente com sua sistemática e disciplina, com seu tempo matemático e mecânico. O discurso recorre ao medieval, mas as motivações são da modernidade.

Livro em guarani "Do Bom Uso do Tempo", 1759. 

São Miguel das Missões. Demersay, 1846. 


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