Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 21 de abril de 2018

A PORTA “LACRADA PARA SEMPRE”


         O Noticiador foi o primeiro jornal editado em Rio Grande. Perdurou entre 3 de janeiro de 1832 e 9 de janeiro de 1836 e tinha como editor Francisco Xavier Ferreira, que faleceu de forma trágica em prisão do governo central após a eclosão da Revolução Farroupilha. Além dele, outro personagem que escrevia neste jornal morreu de forma trágica. Seu nome era Bernardo José Viegas, padre católico, político, maçon e defensor de princípios liberais. Seu assassinato ocorreu no dia 3 de outubro de 1833, quando recebeu um tiro estando na soleira da porta central da Capela de São Francisco. O assassino nunca foi preso. A porta da capela em que o padre Viegas foi alvejado foi lacrada “para sempre” conforme determinação do Bispo do Rio de Janeiro, dom José Caetano da Silva Coutinho.
      O contexto de fundo para estes acontecimentos está no período regencial, iniciado após a abdicação de D. Pedro I em 7 de abril de 1831 e que perdurou até a maioridade de D. Pedro II em 1840. No ano de 1833, o clima era de tensão no Brasil devido às iniciativas de restauradores portugueses que desejavam o retorno de D. Pedro I ao poder favorecendo os interesses lusitanos em detrimento dos brasileiros. Interessante é que a grande comemoração da Independência do Brasil não era realizada no dia 7 de setembro, mas, no dia 7 de abril, por ser a data da abdicação de D. Pedro I. O Noticiador, de forma incisiva, atacava todas as iniciativas restauradoras que teriam um caráter contrário a independência e soberania brasileira acreditando numa possível recolonização do Brasil por Portugal.
Esta história está nas edições do jornal O Noticiador do ano de 1833 e foram pesquisadas por Francisco Riopardense de Macedo no livro Diário de um Conflito (Rio Grande: Editora da FURG, 2003).

O PADRE VIEGAS

O padre Bernardo José Viegas, era do Bispado de Coimbra, vindo ao Brasil e seguindo a carreira eclesiástica. Fixou residência na então Vila do Rio Grande de São Pedro. Membro da maçonaria foi um dos fundadores da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. Atuou na promotoria pública, advocacia e como professor. Era um combatente da restauração e defensor do nacionalismo. No mês de abril de 1833 foi eleito Deputado junto com o amigo Francisco Xavier Ferreira e de Bento Gonçalves da Silva. Com o assassinato do padre Viegas, o jornal O Noticiador na edição de 7 de outubro, dedicou um espaço na necrologia: “Temos de noticiar aos nossos leitores o mais atroz e o mais escandaloso atentando contra as leis, contra a moral e contra a ordem e segurança individual. O cidadão Bernardo José Viegas, Presbítero Secular, brasileiro adotivo e morador nesta vila há mais de onze anos, foi vil e atraiçoadamente assassinado no dia 3 do corrente, logo ao anoitecer. Este denodado patriota tinha saído de sua casa para ir à de seus amigos conversar, como era de costume. Ao passar pela capela de São Francisco, que estava iluminada e a cuja porta se haviam lançado foguetes, o monstro que talvez o esperasse ou seguisse, tendo-o bem reconhecido, lhe disparou um tiro que poucos minutos viveu e se evadiu para ir se asilar no antro da perversidade, que longe não seria. A vida pública e particular deste cidadão não constitui o réu de outro crime se não de ser aferrado à liberdade geral, ao sistema jurado e à prosperidade da pátria que tenha escolhido: além disto, era eleitor, promotor público, professor de cadeira de ensino mútuo, presidente da Sociedade Defensora e, pelo seu talento e habilidade, advogava com crédito e honra algumas causas que lhe confiaram seus amigos e concidadãos. Isto era bastante para ter inimigos e irritar a função retrógrada de alguns Chic... que quer ser preponderante nesta vila e tratar destes negócios com exclusão, e este é também o motivo, segundo é público, por que perpetraram semelhante assassinato. Monstros! Que dano vos fazia este infeliz? Assim se atacam as leis? Assim se ataca a segurança pública? E as garantiras do homem em sociedade? E ficará impune este horroroso acontecimento? Ficará, pois que a impunidade está na ordem do dia, e a polícia em total abandono.
Brasileiros! Este atentado pede vingança, mãos sacrílega se mancharam no sangue do nosso compatriota, de um cidadão pacífico e inerme. Não sejais indiferentes à enormidade de tal crime. A liberdade não consiste só em palavras, porém em sustentar os nossos direitos sagrados, atropelados na pessoa do Sr. Viegas, o delito atroz nele praticado ameaça as nossas vidas e a existência da pátria livre: os assassinos passeiam entre nós, marcam as suas vítimas, quem sabe se nós seremos a segunda? Brasileiros, coragem, vingança. O tribunal de júri está a instalar-se, a junta de paz está em exercício, os malvados querem atirar-vos! Avante! E se o senhor Bernardo José Viegas acabou a sua carreira vítima dos seus liberais sentimentos, elevai templos a sua memória: cobri-vos de luto”.
O jornal também denunciou que dois dias após o assassinato, foi dado um tiro para dentro de uma casa e passou a circular a informação de uma lista em que várias pessoas seriam eliminadas, o que desencadeou um período de medo na Vila. Acreditava-se que a próxima vítima poderia ser Francisco Xavier Ferreira, o qual fez a seguinte manifestação: “Ao meu conhecimento chegou, e a passada noite fui ocular testemunha, que vós, desde a infeliz noite do bárbaro assassinato do Padre Bernardo José Viegas, zelosos da conservação dos meus já cansados dias, tendes rondado efetivas e prolongadas horas a minha casa, dispostos a defender a minha vida, ameaçada pela mesma califa retrógrada que cortou o fio à existência do inocente patriota. Este generoso e voluntário sacrifício muito tem penhorado o meu coração assaz atribulado pelo execrando atentado de 3 de outubro pelo terror que espalhou nesta vila e, sobretudo pela crise em que vejo o nosso país digno, certamente, de melhor sorte, porém, sendo desonroso ao cidadão brasileiro sucumbir a desgraças quando se trata da salvação da pátria, muito me animo para dar-vos os mais sinceros agradecimentos pela parte ativa que tendes tomado na proteção da minha existência e, em retribuição a tão assinalado favor, vos ofereço, cidadão patriotas, a minha pequena fortuna e tudo quanto possuo para ajudar-vos a sustentar a ordem e a tranqüilidade pública, e defendermos a liberdade, a independência, o trono do Senhor Dom Pedro Segundo, com exclusão expressa e formas de outra qualquer pretendente, e a Constituição do Império, com as reformas federativas legais. O Supremo Árbitro do Mundo vos guarde. Cidadãos Patriotas, Rio Grande, 8 de outubro de 1833”.

A acirrada disputa entre liberais e restauradores foi se acentuando, num período dos mais turbulentos da história do Brasil, ligado as rebeliões provinciais que passam a questionar a estrutura de dominação concentrada no Governo Central. O foco foge dos restauradores portugueses e passa a voltar-se contra a centralização político-administrativa conservadora que seria questionada em discursos liberais e pelas armas com a Revolução Farroupilha em setembro de 1835, num prelúdio dos dez anos dramáticos do confronto entre imperiais e farroupilhas.

Jornal O Noticiador criado em 1832 de orientação liberal radical. 

Capela de São Francisco. Fotógrafo Amilcar Fontana, 1912.

A porta central é que foi "lacrada para sempre". Acervo: papareia. 

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