Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

O CASSINO EM 1944

         Fortunato Pimentel publicou em 1944 o livro “Aspectos do Município do Rio Grande”. Dedicou 548 páginas para fazer um balanço da geografia, história, economia, administração, arquitetura, cultura etc da cidade mais antiga do Rio Grande do Sul.
Um dos temas desenvolvidos foi o Balneário Cassino que foi contemplado com várias fotografias das edificações da Av. Rio Grande e dos veranistas à beira mar. Algumas destas imagens são reproduzidas evidenciando que o Cassino não ficou totalmente abandonado durante a Segunda Guerra Mundial. Entre a declaração de guerra ao Eixo em agosto de 1942 até o final da guerra em 1945, o litoral brasileiro ficou sob vigilância, em terra, pelo Exército Brasileiro. O antigo Hotel Cassino foi ocupado como alojamento das tropas.  

As fotografias evidenciam uma movimentação típica de veraneio em período de carnaval. Podemos observar o tipo de protetor para o sol/vento; as roupas de banho; os carros e ônibus estacionados na praia; o desfile de blocos carnavalescos; o trem trazendo os visitantes etc. 





FORTE DE SÃO MIGUEL

As fortificações militares marcaram a formação histórica do atual município do Rio Grande. A posição estratégica da Barra do Rio Grande levou Portugal a implementar o processo de ocupação militar em fevereiro de 1737. O contexto era de guerra contra os espanhóis no Rio da Prata pela posse da Colônia do Sacramento (no atual Uruguai). Tendo início com a construção do Forte Jesus-Maria-José - projeto do Brigadeiro José da Silva Paes -, Rio Grande foi o palco da construção de várias baterias e fortificações até o ano de 1777 quando ocorre a reconquista do Rio Grande do Sul pelos portugueses frente a ocupação espanhola. Estes testemunho de um tempo de guerra entre lusitanos e espanhóis, apesar de permanecer vivo em mapas e documentos do século XVIII, desapareceu do conjunto arquitetônico local: o material perecível (barro, madeira e vegetação) não permitiu que estes testemunhos do passado chegassem ao tempo presente.
Uma maneira indireta de se aproximar do formato e funcionalidade das fortificações como o Forte Jesus-Maria-José e do Forte da Barra (dois entre cerca de dez fortificações com formatos diferenciados), é visitar o Forte  de São Miguel no Chuy.  
Os conflitos militares foram devastadores para a fortificação localizada no Uruguai (a poucos quilômetros da linha de fronteira com o Brasil) que ficou abandonada desde o final da guerra de independência do Uruguai (1825-1828) até a restauração ocorrida a partir de 1928. A construção em pedra possibilitou que parte das estruturas se mantivessem visíveis o que não ocorreu com o barro que foi a matéria-prima de construção em Rio Grande (devido a ausência de rochas na região).
O Fuerte de San Miguel está localizado a 6 quilômetros ao sul da Lagoa Mirim no Cerro de San Miguel, Chuy, no Departamento de Rocha. Um sistema de defesa básico (terra e palha) de campanha foi construído pelos espanhóis em 1734 e durou pouco tempo. Com a ocupação da Barra do Rio Grande em fevereiro de 1737, o engenheiro militar e fundador do Rio Grande brigadeiro José da Silva Paes elaborou uma planta para construção de uma fortificação em forma de polígono retangular em alvenaria de pedra e com dois baluartes nos lados menores.  Em 1740 a estrutura já apresentava quatro baluartes pentagonais e edificações internas erguidas em alvenaria e pedra. O fosso ainda não fora construído. Com a ocupação espanhola de 1763, a fortificação recebe novas obras (engenheiro Bernardo Lecocq). A construção do fosso é prevista desde 1772 e a forte assume o formato hoje conhecido em 1797.
 A documentação registra o ataque/morte sofrido por soldados que faziam a vigilância noturna da área externa: pumas e jaguares eram os responsáveis. O temor por rondas noturnas deve ter feito parte do imaginário destes soldados lançados na solidão do pampa uruguaio-rio-grandense.
Abandonado desde a década de 1820, na década de 1920 é criada uma comissão composta por militares e pelo historiador Horacio Arredondo que defenderam a reconstrução do “Fuerte” com base nas plantas originais e com técnicas de cantaria e construção utilizadas no século XVIII. Foram reconstruídas/restauradas a Casa do Comando, a casa da Palamenta, a Capela, a Cozinha e os quartéis da tropa além de toda a estrutura dos baluartes, fosso, cemitério etc. O forte foi declarado Monumento Nacional em 1937 e é administrado pelo Estado Maior do Exército da República Oriental do Uruguay. Um Museu de História Militar permite uma visualização ao turista do que seria o cotidiano de uma fortificação militar no século XVIII.

Se o material disponível fossem rochas e “se” tivesse ocorrido a manutenção destas estruturas (além de especulação imobiliária etc etc), os cerca de dez fortes/baterias que foram edificados em Rio Grande (parte sul da Barra) poderiam ser um consistente fator de atração “turística ímpar” a emoldurar o cenário paisagístico do Estuário da Lagoa dos Patos em seu encontro com o Oceano Atlântico. 

: Forte de São José da Barra do Rio Grande (eng. Militar Alexandre Montanha-1777, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

Forte de São Miguel.

Forte de São Miguel. 


AS TRÊS MARIAS E ÓRION

Uma área da esfera celeste constituída por estrelas que compõem alguma imagem ou formação delimitável é uma constelação. Podemos também definir constelações como agrupamentos aparentes de estrelas os quais os astrônomos da antiguidade imaginaram formar figuras de pessoas, animais ou objetos. A União Astronômica Internacional reconhece 88 constelações entre as quais a de Órion onde estão localizadas as Três Marias. Órion, na mitologia grega, era um gigante filho de Poseidon que foi morto “inconscientemente” por sua amiga Artêmis (a deusa da caça) numa artimanha de Apolo (irmão de Artêmis). Para perpetuar a memória de seu companheiro de caçadas Artêmis colocou Órion entre as Três Marias e próximo ao seu fiel cão Sirius (na constelação de Cão Maior – Sirius é a estrela mais brilhante do céu).
A partir de meados de dezembro, a constelação de Órion surge no horizonte e é facilmente identificável devido a três estrelas formarem uma linha inclinada. Localizando as Três Marias fica fácil imaginar um trapézio e identificar as quatro estrelas principais que compõem o conjunto visível: Betelgeuse, Bellatrix, Saiph e Rigel. Rigel e Betelgeuse são as mais brilhantes da constelação.
A constelação de Órion é um dos sinais da mudança de estação: seu surgimento no horizonte é uma marca da chegada do verão no Hemisfério Sul. O poeta grego Hesíodo (c.753-c.680 a.C.) escreveu que quando Órion estivesse no meio do céu e a estrela Arcturus estivesse no horizonte ao amanhecer, havia chegado à hora da colheita.
Em épocas anteriores ao surgimento das grandes cidades, da luz elétrica e do relativo esquecimento do céu noturno, os povos do Oriente ou do Ocidente tinham outra perspectiva dos movimentos do Sol, da Lua, dos Planetas ou das estrelas: a observação das constelações era essencial para a previsão das estações do ano que estavam ligadas ao plantio e a colheita. O ciclo da natureza e o ciclo da natureza humana estavam muito mais interligados a ponto de se imaginar personagens e imagens criativas na disposição dos objetos celestes. Dragões chineses, personagens da mitologia greco-romana ou mitos dos índios amazônicos desfilavam na misteriosa abóboda celeste que estes povos diferenciados tentavam “humanizar mitologicamente” disciplinando o desconhecido e projetando personagens humanos.
O céu noturno era uma grande fonte de inspiração e de leituras de mundo. Hoje, apesar de ser uma imagem cativante de perpetuação da memória, é muito difícil imaginar o gigante Órion com seu cinturão, uma pele de leão e uma espada!
As Três Marias na Astronomia Ocidental, utiliza, para denominá-las, as palavras árabes Mintaka, Alnilam e Alnitak (que é uma estrela dupla).  A versão cristianizada das Três Marias é de que foram três mulheres (Maria de Cleofas, Maria Madalena e Salomé) que foram até o túmulo de Jesus junto com sua mãe Maria. Ficaram eternizadas na abóboda celeste!
A Constelação de Órion vai continuar a ser fator de reflexão e poderá contribuir para a ampliação do conhecimento sobre os fenômenos cósmicos estelares. Os olhares já se voltam para Betelgeuse que é uma estrela supergigante vermelha com diâmetro que varia entre 500 a 900 vezes o do Sol. Nos próximos mil anos esta estrela encontrará o seu ocaso!
Betelgeuse tem chamado a atenção dos astrônomos e astrofísicos e tem sido pesquisada pelo Observatório Austral Europeu (ESO) que tem obtido imagens de chamas emitidas pela estrela e da nebulosa que está se formando em seu entorno (mais de 60 bilhões de quilômetros de extensão). A estrela está na fase final de sua vida e expele suas camadas exteriores para o espaço. Parte do material que compõe o planeta Terra (silicato e alumina) é oriundo de uma estrela de grande massa que colapsou a mais de cinco bilhões de anos num cenário em que olhar Betelgeuse morrer será refletir sobre os novos mundos que surgirão com seu ocaso.
Betelgeuse está em média há 427 anos luz da Terra (cerca de quatro quatrilhões de quilômetros) quando ela se tornar uma Supernova (explosões quando seu brilho pode se intensificar em um bilhão de vezes até se tornar uma estrela de Nêutron) não deverá representar um perigo para a vida em nosso Planeta. Durante a noite, durante alguns meses, a estrela poderá apresentar um brilho de lua cheia ou lua crescente. Quando isto irá ocorrer é fator de debate e incertezas entre os astrônomos. O fato é que desde a Antiguidade a constelação de Órion está em pauta e um rico imaginário foi construído para explicar as Três Marias e outras estrelas que compõem esta constelação.


Três Marias pintadas por Frei Angélico em 1440. Museu de San Marco, Florença.

nebulosa em Órion (Ljubinko Jovanovic). 

Três Marias com seta apontando para Betelgeuse (Hubble European Space Agency).

Órion em obra de Johann Bayer (1661). 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A REVOLUÇÃO NA ÓTICA DE UM CRONISTA

A Revolução de 1930 assinalou o início de um processo de ruptura política e econômica que conduziu ao afastamento da ordem do mando a certas elites dominantes da República Velha, levando a falência da concepção de um Estado liberal e a edificação de posturas autoritárias que conduziram a instauração da ditadura do Estado Novo em 1937.
Alfredo Ferreira Rodrigues, um dos maiores intelectuais rio-grandinos, assistiu aos movimentos de mobilização dos efetivos que partiram para à frente de combate no Paraná e São Paulo. Pela ótica afetiva elaborou uma crônica onde captou cenas de um cotidiano que se difundiu pelas cidades do Rio Grande do Sul naquele mês de outubro de 1930: o recrutamento, quase sempre voluntário, de jovens que partiam para garantir a vitória do movimento revolucionário e efetivar a posse de Getúlio Vargas na presidência do Brasil.
O movimento militar perdurou entre 3 de outubro até a deposição do então presidente Washington Luis no dia 24 do mesmo mês. A crônica registra um momento de exaltação patriótica dos que partiam de apreensão dos que ficaram a espera de notícias, assinalando um momento de integração de um ideal revolucionário de militares, camadas médias da população urbana e dissidentes das oligarquias, poucas vezes repetido ao longo da história do Brasil.

“Na segunda-feira 6 de outubro, assisti na Estação de Santa Maria, a passagem das forças de Porto Alegre, São Leopoldo e Caxias sob o comando do coronel João Alberto. Quando chegou o trem, era um agitar incessante de lenços vermelhos, só se viam braços erguidos empunhando carabinas no meio de uma algazarra estonteante de cantos patrióticos, de brados de alegria, de vivas à revolução e ao Rio Grande. Entusiasmo indescritível, regozijo nunca visto. Ninguém diria que toda essa mocidade marchava para a luta armada e talvez para a morte. A morte, que importava ela a esses moços, quando estava em jogo o respeito as tradições guerreiras e a própria honra do Rio Grande?
Foi um delírio a passagem do trem. A gare estava apinhada e toda a imensa mole do povo, homens e mulheres, moços e velhos, todos vibravam de entusiasmo. O trem partiu enfim! Ao longo se viam relampejando lenços vermelhos e ecoavam vivas e cânticos guerreiros. Espetáculo comovente que nunca se me apagará da memória! Recordei estão cena semelhante a que tinha assistido há 16 anos. Em agosto de 1914, nos primeiros dias da grande guerra saí do Rio Grande no trem em que embarcavam para a pátria, via Montevidéu, os reservistas franceses, altos funcionários da companhia que estava executando as obras da Barra. Despedi-me em Cacequi de alguns deles, meus amigos. Vi afastar-se o trem, longe, muito longe, agitando lenços, vibrando o céu imenso do canto imortal da Marselhesa. Pobres amigos! Nenhum deles voltou.
No Rio Grande houve tiroteio cerrado perto de 10 horas, devido a demora com que se fez o levante, dando tempo a que os oficiais partidários do governo se entrincheirassem no quartel. A luta só começou na madrugada de 4 de outubro. De Pelotas vieram à noite reforços do batalhão e um contingente de populares. O quartel do 9º Regimento (atual 6º GAC) foi atacado pelas quatro faces e as paredes e janelas esburacadas de balas falam eloqüentemente do vigor da peleja. No telhado da fábrica Poock, há 12 metros do quartel, se deitaram alguns dos voluntários, vindos de Pelotas, fazendo fogo protegidos pelo fio da cumeeira. Um dos atiradores, o estudante Alarico Alves Valença, para cortar o fornecimento de água aos sitiados, tratou de crivar de balas o reservatório de ferro. Tendo acertado alguns tiros na parte baixa do depósito, começou a água a jorrar pelos furos em borbotões. Entusiasmado, o moço atirador se pôs de pé no telhado, levantou bem alto a carabina dando um viva a Revolução! Certeira bala, despejada de perto, o prostrou logo sem vida. Outros voluntários da mesma força, o jovem Carlos Dias, debaixo de intensa fuzilaria conseguiu atravessar a rua e, agachando-se de encontro à parede do quartel, chegou ao portão de entrada. Encontrando-o aberto, num impulso incontido de entusiasmo, empunhou a carabina e investiu sozinho contra a trincheira de paralelepípedo levantada durante a noite. Uma descarga varou-o de balas!”

Cheguei ao Rio Grande na tarde de 7 e já encontrei, alistado como voluntário no 9º Regimento, um dos meus filhos que não quis esperar por mim, com injustificado receio de que eu me opusesse. No dia seguinte, outro mais moço fugiu-me de casa e apresentou-se ao quartel. Recusado, por já estar completo o efetivo, tanto pediu, dizendo não querer que o irmão fosse sozinho, que afinal foi aceito.
   No dia 12, a tarde, o batalhão embarcou fazendo antes uma marcha de 4 quilômetros pela cidade. Não posso descrever o que foi essa marcha, no meio de vivas e de cantos patrióticos acompanhada por uma enorme multidão, em que sobressaiam as mães, as irmãs e as esposas dos que partiam. Foi um delírio, uma ovação sem igual, uma luminosa apoteose. Não houve uma lágrima, sorriam os soldados como se fossem para uma festa. E o trem começou a arrastar-se lentamente no meio de vivas e de brados de entusiasmo. A minha mulher, a pobre mãe que ficava sem dois filhos, voltou para casa consolada e contente, por lhe terem dito que o nosso filho mais moço era o soldado maior, mais forte  e mais lindo do batalhão. E eu, já no fim da vida, de uma vida de 50 anos de trabalhos, sem os filhos que eram os meus companheiros e amigos de todos os dias, que eram a minha esperança e o meu ponto de apoio e que seriam talvez o meu amparo na hora da invalidez, voltei cheio de apreensões, entristecido como pai, mas, com o coração batendo de entusiasmo, orgulho e feliz como rio-grandense, por ver que os filhos não desmereciam de sua terra e de sua gente. Na véspera, ao dar-lhes os últimos conselhos, disse ao mais velho: -‘Quando houver combate, não te atires na frente, meu filho...’.
-‘Sim! Mas também não hei de recuar’!
         Ao outro, ainda um menino, ofereceram um lugar no Corpo de Saúde ou na Cruz Vermelha, que ele recusou indignado, dizendo: -‘Não quero cuidar de doentes, nem carregar feridos. Quero uma carabina para brigar na linha de frente’! Do Rio Grande, dois dias antes, saíram um batalhão de civis formado numa semana e que, por falta de armamento, ficou retido até o fim do mês em Santa Maria. Desse batalhão começaram a desertar praças para se incorporarem furtivamente a outros corpos que, mais felizes, iam para à frente de combate.
        Contando isto a um oficial do Exército que voltava de Marcelino Ramos, disse-me ele que esses desertores para à frente se contavam por algumas dezenas, tendo sido a maior parte deles recambiados de Santa Catarina.
         Abençoada terra do Rio Grande, como me orgulho de ter nascido em teu seio e como me sinto feliz por ter podido, na velhice, assistir ao renascimento de todas as energias, de todas as grandes virtudes da raça! Rio Grande, novembro de 1930.” Alfredo Ferreira Rodrigues.

Getúlio Vargas e Junta Governativa no Catete em outubro de 1930. CPDOC.


Gaúchos no Obelisco da Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro em outubro de 1930. CPDOC

Alfredo Ferreira Rodrigues