A Revolução de 1930 assinalou o início de um
processo de ruptura política e econômica que conduziu ao afastamento da ordem
do mando a certas elites dominantes da República Velha, levando a falência da
concepção de um Estado liberal e a edificação de posturas autoritárias que
conduziram a instauração da ditadura do Estado Novo em 1937.
Alfredo Ferreira Rodrigues, um dos maiores
intelectuais rio-grandinos, assistiu aos movimentos de mobilização dos efetivos
que partiram para à frente de combate no Paraná e São Paulo. Pela ótica afetiva
elaborou uma crônica onde captou cenas de um cotidiano que se difundiu pelas
cidades do Rio Grande do Sul naquele mês de outubro de 1930: o recrutamento,
quase sempre voluntário, de jovens que partiam para garantir a vitória do
movimento revolucionário e efetivar a posse de Getúlio Vargas na presidência do
Brasil.
O movimento militar perdurou entre 3 de
outubro até a deposição do então presidente Washington Luis no dia 24 do mesmo
mês. A crônica registra um momento de exaltação patriótica dos que partiam de
apreensão dos que ficaram a espera de notícias, assinalando um momento de
integração de um ideal revolucionário de militares, camadas médias da população
urbana e dissidentes das oligarquias, poucas vezes repetido ao longo da
história do Brasil.
“Na segunda-feira 6 de outubro, assisti na
Estação de Santa Maria, a passagem das forças de Porto Alegre, São Leopoldo e
Caxias sob o comando do coronel João Alberto. Quando chegou o trem, era um
agitar incessante de lenços vermelhos, só se viam braços erguidos empunhando
carabinas no meio de uma algazarra estonteante de cantos patrióticos, de brados
de alegria, de vivas à revolução e ao Rio Grande. Entusiasmo indescritível,
regozijo nunca visto. Ninguém diria que toda essa mocidade marchava para a luta
armada e talvez para a morte. A morte, que importava ela a esses moços, quando
estava em jogo o respeito as tradições guerreiras e a própria honra do Rio
Grande?
Foi um delírio a passagem do trem. A gare
estava apinhada e toda a imensa mole do povo, homens e mulheres, moços e
velhos, todos vibravam de entusiasmo. O trem partiu enfim! Ao longo se viam
relampejando lenços vermelhos e ecoavam vivas e cânticos guerreiros. Espetáculo
comovente que nunca se me apagará da memória! Recordei estão cena semelhante a
que tinha assistido há 16 anos. Em agosto de 1914, nos primeiros dias da grande
guerra saí do Rio Grande no trem em que embarcavam para a pátria, via
Montevidéu, os reservistas franceses, altos funcionários da companhia que
estava executando as obras da Barra. Despedi-me em Cacequi de alguns deles,
meus amigos. Vi afastar-se o trem, longe, muito longe, agitando lenços,
vibrando o céu imenso do canto imortal da Marselhesa. Pobres amigos! Nenhum
deles voltou.
No Rio Grande houve tiroteio cerrado perto de
10 horas, devido a demora com que se fez o levante, dando tempo a que os
oficiais partidários do governo se entrincheirassem no quartel. A luta só
começou na madrugada de 4 de outubro. De Pelotas vieram à noite reforços do
batalhão e um contingente de populares. O quartel do 9º Regimento (atual 6º
GAC) foi atacado pelas quatro faces e as paredes e janelas esburacadas de balas
falam eloqüentemente do vigor da peleja. No telhado da fábrica Poock, há 12
metros do quartel, se deitaram alguns dos voluntários, vindos de Pelotas,
fazendo fogo protegidos pelo fio da cumeeira. Um dos atiradores, o estudante
Alarico Alves Valença, para cortar o fornecimento de água aos sitiados, tratou
de crivar de balas o reservatório de ferro. Tendo acertado alguns tiros na
parte baixa do depósito, começou a água a jorrar pelos furos em borbotões. Entusiasmado,
o moço atirador se pôs de pé no telhado, levantou bem alto a carabina dando um
viva a Revolução! Certeira bala, despejada de perto, o prostrou logo sem vida.
Outros voluntários da mesma força, o jovem Carlos Dias, debaixo de intensa
fuzilaria conseguiu atravessar a rua e, agachando-se de encontro à parede do
quartel, chegou ao portão de entrada. Encontrando-o aberto, num impulso
incontido de entusiasmo, empunhou a carabina e investiu sozinho contra a
trincheira de paralelepípedo levantada durante a noite. Uma descarga varou-o de
balas!”
Cheguei ao Rio Grande na tarde de 7 e já
encontrei, alistado como voluntário no 9º Regimento, um dos meus filhos que não
quis esperar por mim, com injustificado receio de que eu me opusesse. No dia
seguinte, outro mais moço fugiu-me de casa e apresentou-se ao quartel.
Recusado, por já estar completo o efetivo, tanto pediu, dizendo não querer que
o irmão fosse sozinho, que afinal foi aceito.
No dia 12, a tarde, o batalhão embarcou
fazendo antes uma marcha de 4 quilômetros pela cidade. Não posso descrever o
que foi essa marcha, no meio de vivas e de cantos patrióticos acompanhada por
uma enorme multidão, em que sobressaiam as mães, as irmãs e as esposas dos que partiam.
Foi um delírio, uma ovação sem igual, uma luminosa apoteose. Não houve uma
lágrima, sorriam os soldados como se fossem para uma festa. E o trem começou a
arrastar-se lentamente no meio de vivas e de brados de entusiasmo. A minha
mulher, a pobre mãe que ficava sem dois filhos, voltou para casa consolada e
contente, por lhe terem dito que o nosso filho mais moço era o soldado maior,
mais forte e mais lindo do batalhão. E
eu, já no fim da vida, de uma vida de 50 anos de trabalhos, sem os filhos que
eram os meus companheiros e amigos de todos os dias, que eram a minha esperança
e o meu ponto de apoio e que seriam talvez o meu amparo na hora da invalidez,
voltei cheio de apreensões, entristecido como pai, mas, com o coração batendo
de entusiasmo, orgulho e feliz como rio-grandense, por ver que os filhos não desmereciam
de sua terra e de sua gente. Na véspera, ao dar-lhes os últimos conselhos,
disse ao mais velho: -‘Quando houver combate, não te atires na frente, meu
filho...’.
-‘Sim! Mas também não hei de recuar’!
Ao outro, ainda um menino, ofereceram um
lugar no Corpo de Saúde ou na Cruz Vermelha, que ele recusou indignado,
dizendo: -‘Não quero cuidar de doentes, nem carregar feridos. Quero uma
carabina para brigar na linha de frente’! Do Rio Grande, dois dias antes, saíram
um batalhão de civis formado numa semana e que, por falta de armamento, ficou
retido até o fim do mês em Santa Maria. Desse batalhão começaram a desertar
praças para se incorporarem furtivamente a outros corpos que, mais felizes, iam
para à frente de combate.
Contando isto a um oficial do Exército que
voltava de Marcelino Ramos, disse-me ele que esses desertores para à frente se
contavam por algumas dezenas, tendo sido a maior parte deles recambiados de
Santa Catarina.
Abençoada terra do Rio Grande, como me
orgulho de ter nascido em teu seio e como me sinto feliz por ter podido, na velhice,
assistir ao renascimento de todas as energias, de todas as grandes virtudes da
raça! Rio Grande, novembro de 1930.” Alfredo Ferreira Rodrigues.
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Getúlio Vargas e Junta Governativa no Catete em outubro de 1930. CPDOC. |
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Gaúchos no Obelisco da Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro em outubro de 1930. CPDOC |
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Alfredo Ferreira Rodrigues |