Quando
no ano de 1890 surge em Rio
Grande à publicação Guia
dos Banhistas buscando divulgar e orientar os veranistas do Balneário
Cassino, outra publicação em língua portuguesa tivera anteriormente êxito editorial
na Península Ibérica e também no Brasil: o livro de Ramalho Ortigão As Praias de Portugal: guia do banhista e do
viajante (Porto: Livraria Universal, 1876). O autor fez um levantamento das
principais praias portuguesas colaborando para a difusão do hábito do banho de
mar e a de valorização de uma cultura voltada ao Oceano. Ele alterna
informações científicas da época com uma linguagem literária bastante despojada
e irreverente, muitas vezes irônica e picante do cotidiano lusitano.
Para Ramalho Ortigão, o mar foi o primeiro guia da
humanidade, sendo que foi na Grécia e na Fenícia que as primeiras expedições
marítimas iniciaram os domínios sobre as forças da natureza. “Amorável e
austero, foi ele que primeiro embalou o berço do homem e que em seguida o
acordou para os nobres trabalhos, sugerindo-lhe as primeiras noções do
universo. O desenvolvimento dos estudos naturais tem progressivamente modificado
a opinião inculta supersticiosa e aterrada de que o mar é o insondável abismo
tenebroso e deserto. Guia dos homens, promotor das civilizações, revelador do
universo, progenitor das ideias que determinaram o abraço fraterno da humanidade
em todo o mundo, o mar é ainda o mais poderoso foco, o mais abundante manancial
da vida”.
Ressaltando os aspectos terapêuticos do
banho de mar tão difundidos pela medicina do século 19, o autor enfatiza: “Tudo
aquilo de que precisa o teu abatido organismo, a tua imaginação, o teu caráter,
a tua alma, o mar possui para te dar. Ele tem o fosfato de cal para os teus
ossos, o iodo para os teus tecidos, o bromureto para os teus nervos, o grande
calor vital para o teu sangue descorado e arrefecido. Para as curiosidades do
teu espírito ele tem as mais interessantes histórias, os mais engenhosos
romances, os mais comoventes dramas, as mais prodigiosas legendas”.
Buscando a identidade lusitana nas
viagens marítimas dos séculos 15 e 16, quando os portugueses pioneiramente
desenvolvem as técnicas para viagens oceânicas as quais seriam referência para
outras nações, o autor cita a frase de Camões ‘A minha alma é só de Deus, E o
meu corpo é do mar!’ ressaltando que “tal é o grito valoroso e sublime da alma
de um povo que a Providencia destinou a ter no mar a sua historia, a sua
inspiração artística, a melhor, a mais bela, a mais gloriosa parte da sua
existência, finalmente, a sua segunda pátria”.
São descritos com maior ou menor brevidade as praias da Foz
do Douro, Leça da Palmeira e Matosinhos, Pedrouços, Povoa de Varzim, A Granja,
Cascaes, Vila do Conde, Espinho, A Ericeira, A Nazaret, Figueira da Foz, Setubal
e as Praias Obscuras (denominação para praias de menor frequência).
Para Ramalho Ortigão, a Praia de Setubal é bastante
freqüentada pelos banhistas da província do Alentejo e da Extremadura Espanhola.
A exposição de Setubal, na foz do Sado, cercada de magníficos pomares e dos
celebres vinhedos de Moscatel, que se estendem ao longo de graciosas colinas, é
extremamente risonha e pitoresca. A população, quase toda empregada no comércio
do sal, na exportação da laranja, no fabrico dos vinhos, é ativa e
trabalhadora.
A Praia de Espinho é de todas as praias a mais estimada
por aqueles que a freqüentam. Os banhistas de Espinho tomam-se todos por este sítio
de uma espécie de exaltação patriótica, exclusiva e intransigente. Não admitem
o paralelo da sua praia com qualquer outra, e consideram os que tomam banho
noutras regiões do globo como adversários, quase como inimigos...
Sobre Cascaes: “se queres dar, leitor, o mais belo dos
passeios permitidos ao habitante de Lisboa, faz o que eu ontem fiz. Levanta-te às
5 horas da manhã, num domingo, veste-te a luz do candieiro, porque em setembro
ainda não é bem dia a essa hora, pega na tua bengala e no teu binóculo e vai à
ponte dos vapores ao cais do Sodré. Tomamos um bilhete de ida e volta no vapor
de Cascaes por dez tostões”.
Vila do Conde é talvez a menos freqüentada pelos
banhistas, o que não obsta a que seja uma das mais pitorescas e mais belas
povoações marítimas de Portugal.
A praia da Granja a meia hora do Porto,
atraíra sucessivamente os banhistas e a fizeram o que ela é hoje: a mais graciosa,
a mais fresca, a mais aceiada das estações de recreio em Portugal.
Pedrouços é a mansão oficial da vilagiatura burocrática
de Lisboa. Chefes de secretaria, oficiais, amanuenses, tabeliães, guarda-livros,
caixeiros de escritório, escrivães, retemperam anualmente em Pedrouços a sua pálida
e sedentária fibra plumitiva. Por isso, Pedrouços, a uma légua de Lisboa, tem
um pouco o aspecto de uma secretaria do Estado—ao ar livre.
O grande defeito de Leça de Palmeira é que a sua vida
objetiva é quase exclusivamente mineral e vegetal. Entre tantas casas, tantos
quintais, tão belas arvores, o animal desaparece, o cão esconde-se, o homem
sepulta-se, a mulher some-se.
Na Figueira da Foz a convivência era tão pouca, que toda
a gente comia salada de alho, francamente, sem receio de vir a falar com outrem
que não fosse à família. “Na minha casa, o teor era este: de manhã, depois do
banho, às oito horas, almoçava-se café com leite, pão com manteiga fresca, que
vinha das terras de minha avó. Ao meio-dia jantava-se. Às oito horas e meia,
quando os tambores e as cornetas do Castelo tocavam a recolher, comia-se peixe
cosido, bifes, enormes quantidades de melão; procedia-se á operação de ir cada
um para o seu quarto queimar os mosquitos; e todos se deitavam em seguida. Alta noite
acordava-se por via de regra uma vez. No grande silêncio da terra ouvia-se o
mar bramir e rebentar na costa com um eco solene e triste. Muita gente vinha do
Porto, de madrugada, tomava banho e regressava à cidade”.
Para finalizar esta breve seleção de visões do autor, o
olhar crítico também recaiu na influência francesa na alimentação: “Nos grandes
restaurantes de Lisboa, a preocupação francesa desnorteia os cozinheiros e
leva-os a envenenar-nos com burundangas asquerosas, cujos efeitos gástricos
levam muitas vezes a vítima a lamentar que, em vez de terem vendido a sua alma
ao estrangeiro, os cozinheiros a não tivessem vendido ao diabo, para não
manipularem para mais ninguém as suas mixórdias execrandas e traidoras. Na
tasca da feira de Belém, a caldeirada de mexelhão e de ruivo, os camarões, as
saladas de alface ou de pimentos, o linguado frito, constituem a lista do que
Portugal pôde oferecer de mais perfeito na ordem dos simples e honestos
acepipes nacionais”.
Ilustrações: Praias portuguesas em desenhos do livro de Ramalho Ortigão
(1876).
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