A escravidão foi uma das marcas fundamentais
para entender o Brasil. Prolongou-se do século XVI até a abolição no ano de
1888. Além da resistência de índios e negros, o combate a escravidão esteve
presente na literatura, poesia, jornalismo e outras formas de expressão
intelectual. Em Rio Grande, cidade portuária em que considerável parte da
população produtiva era de escravos negros, alguns periódicos se manifestaram a
favor da abolição. É o caso do jornal O Artista que, fundado por alguns
operários/tipógrafos, defendia ideias contrárias à escravidão e a favor do
movimento abolicionista, acreditando a escravidão institucionalizada não
poderia conviver com o trabalho assalariado. Porém, os tipógrafos tiveram de
esperar mais de duas décadas para assistir a abolição e as frustrações
advindas.
Francisco das Neves Alves (Os artistas e a
questão da escravidão: um estudo de caso. In: ALVES, F.N. (org.). O Mundo do
Trabalho na cidade do Rio Grande. Rio Grande: Furg, 2000), analisou este tema
que esteve presente nos primórdios do jornal O Artista e que evidenciavam a
independência de seus redatores em relação ao universo escravista que ainda
dominava o cenário econômico local.
Conforme
Alves, “a pequena imprensa, na maioria das vezes descomprometida com os
interesses dos grandes proprietários, exerceria um importante papel na crítica
ao sistema escravista e, neste caso, esteve inserido o Artista nos primórdios de sua existência. Para isto dedicou
algumas de suas edições, nas quais publicou editoriais intitulados “A
escravidão”, os quais o próprio periódico qualificou como “singelos mas verídicos
artigos” (22/12/1862). O ponto fundamental da crítica do Artista para com a escravidão centrava-se na asserção do
anacronismo que esta instituição representava para um mundo denominado de
civilizado, declarando que “uma das maiores nódoas que enegrece o século atual
é, sem contradição, a existência da escravatura nos países que se dizem
civilizados”. Neste sentido, o jornal buscou estabelecer parâmetros entre o
passado e o presente, traçando um breve histórico acerca da escravidão e
afirmando que esta datava de uma época de “obscurantismo”, sendo praticada por
elementos aos quais “mais propriamente compete o cognome de bárbaros”. Diante do
quadro histórico retratado, a folha propunha que se deveria esquecer destas
mazelas do passado, desde que isto servisse para se eliminar o escravismo no
presente: “Passemos um véu sobre os cadavéricos séculos que registram as
enormidades sanguinolentas que aí vão muito resumidamente apontadas e a
história indica com o index tremebundo”,
de modo a que se pudesse entrar “no tempo coevo e vejamos se ele está isento da
mácula com que encetamos este artigo” (10/11/1862).
Ao
realizar este levantamento histórico, o jornal lançava o desafio de estar
denunciando “uma verdade, e essa, infelizmente é uma mordaça que deve açaimar
alguns coevos, que se reputam ilustrados e olham para o passado com gestos de
desprezo”. Nesta linha, o periódico fazia um contraponto temporal, entre
barbarismo e civilização e destacava que “eram bárbaros aqueles tempos em que o
poder do mais forte subjugava a vontade ou o arrojo do mais fraco na arena do
combate”, como o eram “os homens da época – bárbaros – os mandatários dos
suplícios da escravidão”. Mas, diante disto, o semanário questionava e cobrava
aos seus contemporâneos: “Pois bem, homens das luzes e que blasonais de ditar
ao universo leis de liberdade e igualdade, que entendeis ser toda a geração
humana credora dos mesmos foros e regalias, como consentis que nos países onde
imperais haja escravidão?” (17/11/1862).
Ainda
acerca da condição de produto de compra e venda a qual estava condenado o
escravo, o jornal fazia referência ao fato que os cuidados que estes recebiam
quando pequenos, não eram alicerçados na caridade, tendo “fundamento unicamente
na avareza”, uma vez que os proprietários “simulam o usurário que afaga e vela
extremosamente uma bolsa repleta de ouro”. A folha explicava que, a medida que
o escravo crescia, os cuidados diminuíam e, em seu lugar, vinham os castigos
físicos, “as ameaças e um pouco mais tarde execuções cruéis, porque assim apraz
ao ‘senhor’”, tornando-se “uma máquina que trabalha, um punhado de bom metal
movediço que, em ocasião de apuros cambeia por outro metal inerte”
(24/11/1862). Quanto à falta de fraternidade humana nas relações escravistas, o
semanário vociferava: “Qual! O negociador de carne humana colheu o quantitativo
da venda e pouco se lhe dá que os seus semelhantes se exterminem” (22/12/1862).
Outro aspecto do sistema
escravista que o Artista abominava
era a falta de qualquer tipo de garantia ou direito para com um ser humano.
Neste sentido, explicava que, diante do “maldito preceito da escravidão”, era
“o homem reduzido à condição do mais ínfimo bruto, a quem matam a vontade”,
sujeitando-lhe aos “mais abjetos e penosos trabalhos”. Explicava o jornal que
isto se dava apesar do indivíduo submetido ao regime escravocrata constituir-se
num “brasileiro nato, que deveria ter os mesmos direitos, as mesmas
prerrogativas que usufrui qualquer outro cidadão, se a fatalidade não o tivesse
gerado num ventre escravo”. Diante disto, o periódico denunciava os
proprietários de escravos, sentenciando-os: “o vilipendio, porém, não é para
ele (o escravo) a quem a adversa sorte estigmatizou, o vilipêndio é para
aqueles que não lhe a minoram, que não lhe a mudam, podendo-o fazer”
(24/11/1862). A respeito dos obstáculos que eram antepostos à cicatrização
destas feridas, com a eliminação da escravatura, o semanário dos artistas
explicava que a mesma não se dava tendo em vista os grandes interesses
econômico-financeiros em jogo.
Desta forma, o Artista se propunha a promover uma
“cruzada”, em nome da civilização e da humanidade, contra a escravatura.
Defendia, assim, a execução de “uma ação eminentemente humanitária e
civilizadora”, já que “a escravidão dos naturais do país” era “o maior dos
vilipêndios, uma mancha indelével esculpida na história de uma terra que se diz
livre e constitucional”, devendo, “de qualquer forma, terminar tão ignominioso
sistema”. Para o jornal a necessidade do fim da escravidão estava “na
compreensão de todos”, pois, “ninguém haverá que, consultando a consciência,
deixe de compenetrar-se de tão deplorável verdade” (24/11/1862). No
encerramento da série de artigos sobre a escravidão, o periódico realizou
verdadeira conclamação em nome do fim do regime escravista, declarando: “Oh!
tráfico infame que desonras o século dezenove, quando tu acabarás? Quando as
câmaras e o governo brasileiro promulgarão medidas que tendam a obstar a
mercancia degradante”? “Veremos”. Neste sentido, o semanário propunha-se a
prosseguir na sua caminhada antiescravista: “Quanto a nós, embora em estilo bem
vulgar, havemos de continuar na cruzada que encetamos” (22/12/1862).
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