Porto do Rio Grande em 1908

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quinta-feira, 13 de julho de 2017

ESCRAVIDÃO E CRÍTICA JORNALÍSTICA

A escravidão foi uma das marcas fundamentais para entender o Brasil. Prolongou-se do século XVI até a abolição no ano de 1888. Além da resistência de índios e negros, o combate a escravidão esteve presente na literatura, poesia, jornalismo e outras formas de expressão intelectual. Em Rio Grande, cidade portuária em que considerável parte da população produtiva era de escravos negros, alguns periódicos se manifestaram a favor da abolição. É o caso do jornal O Artista que, fundado por alguns operários/tipógrafos, defendia ideias contrárias à escravidão e a favor do movimento abolicionista, acreditando a escravidão institucionalizada não poderia conviver com o trabalho assalariado. Porém, os tipógrafos tiveram de esperar mais de duas décadas para assistir a abolição e as frustrações advindas.
Francisco das Neves Alves (Os artistas e a questão da escravidão: um estudo de caso. In: ALVES, F.N. (org.). O Mundo do Trabalho na cidade do Rio Grande. Rio Grande: Furg, 2000), analisou este tema que esteve presente nos primórdios do jornal O Artista e que evidenciavam a independência de seus redatores em relação ao universo escravista que ainda dominava o cenário econômico local.
Conforme Alves, “a pequena imprensa, na maioria das vezes descomprometida com os interesses dos grandes proprietários, exerceria um importante papel na crítica ao sistema escravista e, neste caso, esteve inserido o Artista nos primórdios de sua existência. Para isto dedicou algumas de suas edições, nas quais publicou editoriais intitulados “A escravidão”, os quais o próprio periódico qualificou como “singelos mas verídicos artigos” (22/12/1862). O ponto fundamental da crítica do Artista para com a escravidão centrava-se na asserção do anacronismo que esta instituição representava para um mundo denominado de civilizado, declarando que “uma das maiores nódoas que enegrece o século atual é, sem contradição, a existência da escravatura nos países que se dizem civilizados”. Neste sentido, o jornal buscou estabelecer parâmetros entre o passado e o presente, traçando um breve histórico acerca da escravidão e afirmando que esta datava de uma época de “obscurantismo”, sendo praticada por elementos aos quais “mais propriamente compete o cognome de bárbaros”. Diante do quadro histórico retratado, a folha propunha que se deveria esquecer destas mazelas do passado, desde que isto servisse para se eliminar o escravismo no presente: “Passemos um véu sobre os cadavéricos séculos que registram as enormidades sanguinolentas que aí vão muito resumidamente apontadas e a história indica com o index tremebundo”, de modo a que se pudesse entrar “no tempo coevo e vejamos se ele está isento da mácula com que encetamos este artigo” (10/11/1862).
Ao realizar este levantamento histórico, o jornal lançava o desafio de estar denunciando “uma verdade, e essa, infelizmente é uma mordaça que deve açaimar alguns coevos, que se reputam ilustrados e olham para o passado com gestos de desprezo”. Nesta linha, o periódico fazia um contraponto temporal, entre barbarismo e civilização e destacava que “eram bárbaros aqueles tempos em que o poder do mais forte subjugava a vontade ou o arrojo do mais fraco na arena do combate”, como o eram “os homens da época – bárbaros – os mandatários dos suplícios da escravidão”. Mas, diante disto, o semanário questionava e cobrava aos seus contemporâneos: “Pois bem, homens das luzes e que blasonais de ditar ao universo leis de liberdade e igualdade, que entendeis ser toda a geração humana credora dos mesmos foros e regalias, como consentis que nos países onde imperais haja escravidão?” (17/11/1862).
Ainda acerca da condição de produto de compra e venda a qual estava condenado o escravo, o jornal fazia referência ao fato que os cuidados que estes recebiam quando pequenos, não eram alicerçados na caridade, tendo “fundamento unicamente na avareza”, uma vez que os proprietários “simulam o usurário que afaga e vela extremosamente uma bolsa repleta de ouro”. A folha explicava que, a medida que o escravo crescia, os cuidados diminuíam e, em seu lugar, vinham os castigos físicos, “as ameaças e um pouco mais tarde execuções cruéis, porque assim apraz ao ‘senhor’”, tornando-se “uma máquina que trabalha, um punhado de bom metal movediço que, em ocasião de apuros cambeia por outro metal inerte” (24/11/1862). Quanto à falta de fraternidade humana nas relações escravistas, o semanário vociferava: “Qual! O negociador de carne humana colheu o quantitativo da venda e pouco se lhe dá que os seus semelhantes se exterminem” (22/12/1862).
              Outro aspecto do sistema escravista que o Artista abominava era a falta de qualquer tipo de garantia ou direito para com um ser humano. Neste sentido, explicava que, diante do “maldito preceito da escravidão”, era “o homem reduzido à condição do mais ínfimo bruto, a quem matam a vontade”, sujeitando-lhe aos “mais abjetos e penosos trabalhos”. Explicava o jornal que isto se dava apesar do indivíduo submetido ao regime escravocrata constituir-se num “brasileiro nato, que deveria ter os mesmos direitos, as mesmas prerrogativas que usufrui qualquer outro cidadão, se a fatalidade não o tivesse gerado num ventre escravo”. Diante disto, o periódico denunciava os proprietários de escravos, sentenciando-os: “o vilipendio, porém, não é para ele (o escravo) a quem a adversa sorte estigmatizou, o vilipêndio é para aqueles que não lhe a minoram, que não lhe a mudam, podendo-o fazer” (24/11/1862). A respeito dos obstáculos que eram antepostos à cicatrização destas feridas, com a eliminação da escravatura, o semanário dos artistas explicava que a mesma não se dava tendo em vista os grandes interesses econômico-financeiros em jogo.

              Desta forma, o Artista se propunha a promover uma “cruzada”, em nome da civilização e da humanidade, contra a escravatura. Defendia, assim, a execução de “uma ação eminentemente humanitária e civilizadora”, já que “a escravidão dos naturais do país” era “o maior dos vilipêndios, uma mancha indelével esculpida na história de uma terra que se diz livre e constitucional”, devendo, “de qualquer forma, terminar tão ignominioso sistema”. Para o jornal a necessidade do fim da escravidão estava “na compreensão de todos”, pois, “ninguém haverá que, consultando a consciência, deixe de compenetrar-se de tão deplorável verdade” (24/11/1862). No encerramento da série de artigos sobre a escravidão, o periódico realizou verdadeira conclamação em nome do fim do regime escravista, declarando: “Oh! tráfico infame que desonras o século dezenove, quando tu acabarás? Quando as câmaras e o governo brasileiro promulgarão medidas que tendam a obstar a mercancia degradante”? “Veremos”. Neste sentido, o semanário propunha-se a prosseguir na sua caminhada antiescravista: “Quanto a nós, embora em estilo bem vulgar, havemos de continuar na cruzada que encetamos” (22/12/1862).

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