A ligação entre os dois pontos que a geopolítica
portuguesa buscou integrar aos seus domínios coloniais, a Colônia do Sacramento
(1680) na margem do Rio da Prata e Rio Grande que só surgiu em 1737, foram
descritas num roteiro elaborado pelo fidalgo português Domingos da Filgueira.
No ano de 1703 ela partiu de Sacramento com o objetivo de descrever as
condições de deslocamento até Laguna em Santa Catarina. A busca de um corredor
de povoamento, consolidando a posse portuguesa no sul do Brasil e no Prata,
justifica a elaboração deste roteiro.
Entre a Colônia do Sacramento e Rio Grande, nenhuma
povoação foi registrada neste início do século 18. O roteiro abarca o atual
litoral do Uruguai e do Rio Grande do Sul, num percurso de automóvel a partir
da cidade do Rio Grande até a cidade de Colônia que pode ser feito em
aproximadamente oito horas. Na época foi realizado em quarenta dias,
enfrentando as precárias ou inexistentes passagens, os alagadiços, as chuvas e
os animais selvagens, tudo ditado no ritmo temporal lento dos passos da mula.
As disputas diplomáticas e as lutas envolvendo o controle deste território
entre espanhóis e lusos, estendeu-se por todo o século em que Filgueira
elaborou o seu roteiro.
Objetivamente, quem tornou viável a ligação entre o Prata
e as feiras de gado em São Paulo foi Cristóvão Pereira de Abreu em 1727,
através da edificação de obras de infra-estrutura, como a construção de pontes,
garantindo o deslocamento de tropeiros e comerciantes ligados a atividade de
apressamento do gado e de animais de tração.
As primeiras informações do desbravador ao sair de
Sacramento até chegar a Castilhos, é de que se gastam aproximadamente vinte e
quatro dias neste percurso, sendo necessário andar sempre “dois a dois com as
espingardas sempre na mão e prontas por causa das onças”, passando a noite em
cuidadosa vigia e com o fogo aceso.
“De Castilhos [litoral norte do
Uruguai] até o Rio Grande [atual cidade do Rio Grande] se gastam quinze dias e
tanto que se tiverem andado três ou quatro de Castilhos, se avista um lago
[Lagoa Mirim] que vai costeando a costa rio acima, obra de meia légua por baixo
da dita lagoa [Lagoa dos Patos- o autor refere-se às duas lagoas como se fossem
a mesma], faz a barra onde se vê um cruz que tem a era do tempo em que nós
passamos e abaixo tem o porto onde nós fizemos aguada que é acima da barra do Rio
Grande meia légua”. (FILGUEIRA, Domingos da. Como viajar por terra da Colônia
do Sacramento à Laguna In: A conquista do
Rio Grande. Porto Alegre: Riocell, 1990.
Por volta de 1690 já há relatos de
embarcações, vindas do Atlântico, adentrando na barra do Rio Grande. Apesar da
ausência de moradores sedentários, cruzar o canal do Rio Grande consistia num
desafio para os raros andarilhos. Para cruzar a barra do Rio Grande, Filgueira
explica os passos a serem seguidos, numa receita que pode ter sido elaborada
por outros transeuntes que tiveram que enfrentar este obstáculo. Devido à
deposição de sedimentos, a barra estava relativamente estreita sendo possível
cruzá-la em meia hora:
“Neste porto é necessário passar em jangada,
que se há de fazer em ocasião de reponta da maré. E a jangada se fará de
espinho branco pela forma seguinte: buscar-se-á por aquele mato madeira de
espinho seca para as estivas que juntarão, e os três paus para a estiva pouco
importa que sejam verdes. Hão de estes ter quinze até dezoito palmos de
comprimento, far-lhe-ão duas faces, uma para baixo outra para cima. Por cima
desta estiva se fará outra de madeira com travessas lançadas e amarradas uma às
outras; por cima de ambas as estivas se lançarão dois paus, um por cada lado,
que serve de talabardães para se armarem os remos, cujos paus serão grossos e
secos, os remos serão de boga e de espinho branco verde que é mais forte e não
falta; pôr-lhe-ão quatro remos, dois por banda, e a jangada tem quinze ou
dezesseis palmos de comprimento, e daí para cima, conforme a quantidade de
gente que houver de passar, porque esta medida é para seis passageiros”.
Segundo Filgueira não faltavam porcos, cervos e veados
pela campanha, devendo “aos cervos atirar com bala; aos porcos e veados basta
munição grossa. Também não faltam pássaros pela praia”. Pelas “margens do rio
Grande há muita caça de porcos e outros animais e pássaros que se podem matar e
fazer provimento. Com esta prevenção nunca na minha jornada faltou carne, nem
soube que cousa foi fome, que outros experimentam por sua culpa”. O desbravador
também observou lobos marinhos circulando entre a barra e a praia.
Infelizmente, não há referências sobre a fauna existente na atual reserva
ecológica do Taim, pois fontes de 1780 descrevem a necessidade em promover
caçada a onças existentes neste local.
Como conselho final, Filgueira sugere a quem desejava
empreender esta jornada, deveria estar acompanhado de “dois ou três cães bons,
três espingardas bem experimentadas e municiadas, duas catanas ou facas de
mato, e a matalotagem que cada um puder”.
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