Porto do Rio Grande em 1908

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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O COBERTORZINHO DE MOSTARDAS EM RIO GRANDE

Cobertor de Mostardas. https://www.facebook.com/p/Artesanato-Cobertor-Mostardeiro-100063487665954/
https://www.facebook.com/photo/?fbid=1060471332745779&set=a.522375826555335

 O conto de J. Simões Lopes Neto, O Cobertorzinho de Mostardas, tem início na cidade do Rio Grande. A segunda parte do conto e, muito rápida, se passa em Mostardas onde é adquirido o cobertor. A terceira em Bagé onde ocorre o desenlace da história. 

Reproduzo a seguir, a parte relativa ao personagem Romualdo trabalhando num armazém em Rio Grande


"No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época dava a nota no comércio da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de - vassoura.

Varria o armazém - uma "venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do patrão e ia à missa das sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu cascudo dado pelo sr. 1º caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir numa esteira, atrás das pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.

Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que...

Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas como eu, porém bonitinhas como uns feitiços.

De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos mas baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.

As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.

À noite, quando ia à bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.

Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do meu acanhamento.

Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro.

A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras, puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só havia de ser servida por mim!

- Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!

Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:

- É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu "orde"!

E este seu criado Matias. A vida ia correndo.

Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali fazendo horas, até esses não apareceram.

Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando embarafustou porta adentro a mulatinha:

- Seu Romualdo, três pé-de-moleque!

Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:

- Toma: isto é doce como tu.

A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:

- Como tu, vá ele! "Menas" confiança!

Estomagado com a ingratidão, quis retomar a rapadura e fisguei o pulso da mulata. Houve uma pequena luta silenciosa e justo, ao tempo que entrava da rua o patrão, a mulata bradava às armas:

- Seu Romualdo, não me belisque!

- Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.

E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas, quebrei o corpo. Depois, não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com manteiga; nele e nela afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de defesa.

Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas, outra negaça de corpo e quando alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa. Calafetei-o!

E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:

- Bem feito! Apanhou! Apanhou! Bem feito!

Cinco minutos depois entrava em casa.

- Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos caixeiros! Patife!

- Mas ele ia arrancar-me as orelhas, murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com a boca pegada a cuspo grosso.

E Romualdo pai:

- Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!

E Romualdo filho: - Que ele sempre tratou-me como cachorro gaudério! Ih! Ih! Ih!

E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a "velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.

Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.

Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.

Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.

Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.

Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas".

Romualdo retorna a Rio Grande e parte de diligência para Bagé. Esta pode ser a indicação de uma história (fictícia) ocorrida antes de dezembro de 1884 quando é inaugurada a linha ferroviária Rio Grande-Bagé. Ter ido de diligência seria uma decisão irracional. Como historiador Simões Lopes Neto tinha ciência dos referenciais de temporalidade no surgimento das tecnologias urbanas/rurais. 

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