Rincão da Cebola em direção ao Porto Velho do Rio Grande na tarde do dia 04-05-2024. Perceptível elevação da água junto ao cais. Acervo: Luiz Henrique Torres. |
Reproduzo o Boletim publicado pelo Comitê de Eventos Extremos da FURG na noite do dia 3 de maio de 2024 às 22h52.
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Boletim 01/2024 Análise do Corrente Evento Extremo no RS e Prováveis Impactos no sul do RS
Antes de avançar em aspectos técnicos sobre as possibilidades e limitações da previsão precisa do provável impacto no município de Rio Grande do evento extremo corrente, é importante destacar as duas principais razões que dificultam estabelecer esse processo, de alta complexidade técnico-científica:
(i) eventos extremos, inéditos em toda uma geração, não possuem parâmetros ambientais conhecidos para serem referenciados;
(ii) os órgãos públicos não possuem sistemas observacionais complexos e diversos o suficiente para permitir que modelos mais avançados possam fazer esse tipo de previsão.
Minimamente, os sistemas de observação devem cobrir um conjunto denso de variáveis meteorológicas, registradas por estações automáticas e conectadas em rede, a métrica dos níveis dos cursos e corpos d’água, e o registro cartográfico preciso dos leitos desses cursos e corpos d´água, de seu entorno, e, especialmente, das áreas habitadas nessas regiões de maior risco. E quando citamos registros cartográficos, tratamos de dados geodésicos e topográficos, bem como do conhecimento dos solos e das coberturas vegetais, e da ocupação e uso da superfície do solo.
Em qualquer parte do mundo onde se pode dizer que a população possui um sistema de proteção contra catástrofes ambientais, esses dados são conhecidos e os alertas podem ser emitidos com segurança e responsabilidade. Aqui em Rio Grande, entretanto, estamos às margens do estuário da maior laguna costeira das Américas, e não possuímos dados minimamente integrados que nos permitam fazer previsões de alta precisão. Por isso, permeiam artigos e posts que não são mais do que exercícios de simulação e modelagem desqualificadas.
Aqui um sumaríssimo e breve exercício do sistema ambiental em que estamos inseridos.
A conformação do terreno nas margens é crucial para entender a inundação. Ou seja, a topografia do entorno inundável. Na figura é possível entender que à medida que o nível sobe, aumenta também a área da superfície limite inundada. Numa planície costeira, como a que estamos implantados, para que se tenha alguns centímetros de elevação no corpo d’água são necessários grandes volumes de água. Isso é diferente dos vales dos rios no norte do estado.
Um projeto que associa a FURG e a Prefeitura Municipal do Rio Grande permitiu nos últimos anos construir um modelo de terreno de alta precisão, e nos permite hoje saber as áreas que serão inundadas de acordo com o nível d’água no estuário, como mostra a ilustração abaixo, onde em azul claro estão as áreas das ruas inundadas quando o nível do estuário estiver 50 cm acima da máxima de inundação normal, ou seja, aquela condição em que a Lagoa está cheia, mas ainda não impacta na cidade. O nível que serve de referência nesse modelo está materializado num instrumento instalado no Centro de Convívio dos Meninos do Mar, CCMAR-FURG. Esse modelo foi testado e validado no último evento, de setembro de 2023.
Na figura 01, o volume de água que entra no nosso estuário ao norte advém de toda a bacia do sistema de lagoas Patos-Mirim. O volume que deixa o estuário para a plataforma continental, no Oceano Atlântico, o faz pela estreita passagem entre os Molhes da Barra, pelo Canal de Acesso do Porto do Rio Grande, e depende da direção do vento atuante. Então, o nível da água no estuário depende desse balanço de massas de água, ainda acrescido ao que precipita nas áreas próximas que drenam diretamente para o corpo d’água e da direção do vento atuante.
Por exemplo, estimamos que em um nível médio de inundação normal o estuário comporte algo em torno de 1250 milhões de metros cúbicos de água. Isso, no que poderíamos considerar a calha normal do estuário. Para a máxima de inundação normal, que seriam aproximadamente 50 cm acima dessa média, e que ainda não deixaria sob as águas nenhuma de nossas áreas urbanas, seria necessário um acúmulo de cerca de mais 200 milhões de metros cúbicos no volume comportado no estuário.
Ainda mais, se considerado o modelo de terreno do entorno do estuário, para que desse nível ainda pudéssemos ter mais 50 cm de elevação no nível das águas aqui, seriam necessários mais 450 milhões de metros cúbicos, haja visto que a área do território inundado nesse caso passaria dos normais 38.000 hectares, para algo próximo a 60.000 hectares.
Claro que nós observamos de perto, na cidade, as ruas mais próximas a orla inundar e nos preocupamos. Mas, muito antes, inundam as áreas no entorno das ilhas do estuário, os baixios e os banhados. Essas áreas em cotas limites comportam boa parte do volume da água que acumula no estuário, aguardando o fluxo natural para o oceano, e salvaguardando as nossas estruturas urbanas.
Então, se sabemos isso, como não podemos fazer previsões precisas? Porque não estamos medindo sistematicamente e precisamente os volumes que se deslocam do norte da Lagoa dos Patos e os volumes que chegam pelo Canal de São Gonçalo. Também não medimos os volumes que saem pelos Molhes da Barra, nem conhecemos adequadamente o processo que impõem maior ou menor vazão de descarga, exceto por alguns parâmetros elementares, como o nível do mar na costa.
E esse nível tem relação direta com a condição do vento ao largo das nossas praias. Esse é um dado que vem sendo medido pelo SIMCOSTA, mantido na FURG e com contribuição fundamental da Portos RS, e já nos permite fazer algumas previsões mais qualificadas. Porém, são uma das componentes, sendo que nas demais estamos às cegas.
Finalmente, com base no que estamos monitorando, e isso se resume a medição do nível do estuário em 3 pontos, e com as previsões de vento e chuva dos modelos globais para os próximos 7 dias, tendo em conta as medidas de nível no Delta do Guaíba, podemos afirmar que a probabilidade do nível da água na orla das cidade de Rio Grande e São José do Norte atingir os limites do evento de setembro de 2023 é muito alta, e talvez ultrapassar aqueles limites, caso a condição de ventos do quadrante sul se intensifique. Indicamos também que os prognósticos de elevação dos níveis da laguna e do estuário na escala de metros é irreal para esse evento extremo de precipitação, função justo de sua enorme área e de estar numa região plana. O tipo de elevação que se observa nas calhas dos rios que geraram efeitos catastróficos em outros municípios são de outra proporção, função da topografia acidentada dessas regiões do estado.
Quando vai chegar em São Lourenço do Sul e em Rio Grande? Os registros científicos indicam que a vazão desde o Guaíba se faz sentir num período em torno de 7 dias até Rio Grande e 3 dias até São Lourenço do Sul. No entanto, esse é um evento de grandes proporções, e os volumes de águas que estão forçando a passagem de Itapuã, ao norte da Lagoa, são extremos. Além disso, a vazão de afluentes como o Camaquã já está alta, o que indica que vamos experimentar elevações no estuário mais cedo do que esse período citado. A situação em São Lourenço do Sul inspira ainda mais cuidados em função da previsão de chuvas fortes na semana que vem, quando o nível da lagoa já deve estar elevado.
Embora ainda hoje não se tenha condições de afirmar que as águas do estuário atingirão cotas nunca alcançadas, cabe alertar para atenção extrema às recomendações da Defesa Civil, e informar que a equipe do Comitê de Avaliação e Prognóstico de Eventos Extremos da FURG divulgará boletins regulares, enquanto durar o evento, com os dados registrados na instrumentação instalada e sob supervisão da Universidade. Esses dados nos permitem medir a velocidade de elevação do nível do estuário e, assim, em algum tempo hábil, com nosso modelo de terreno, prever o avanço sobre as áreas da cidade e sobre as cotas críticas.
Cientes destas informações é fundamental adotar metidas de prevenção nas áreas de risco e oferecer auxílio para as comunidades em situação de vulnerabilidade, buscando preservar vidas e minimizar os prejuízos advindos desses eventos. 03/05/2024 Comitê de Avaliação e Prognóstico de Eventos Extremos da FURG Dra. Jaci Maria Bilhalva Saraiva (Coordenadora) Dr. Eder Leandro Bayer Maier (Coordenador Adjunto) Dr. Eduardo Resende Secchi Dra. Elisa Helena Leão Fernandes Dr. Glauber Acunha Gonçalves Dr. Leandro Bugoni Dr. Osmar Olinto Moller Junior Dr. Ricardo Acosta Gotuzzo.
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As informações trazem alguns esclarecimentos referente as ausências para uma previsão mais precisa do impacto da próxima enchente da Lagoa dos Patos no município do Rio Grande. É estarrecedor constatar que "os órgãos públicos não possuem sistemas observacionais complexos e diversos o suficiente para permitir que modelos mais avançados possam fazer esse tipo de previsão". Outra constatação é de que em Rio Grande "estamos às margens do estuário da maior laguna costeira das Américas, e não possuímos dados minimamente integrados que nos permitam fazer previsões de alta precisão".
Em síntese "não estamos medindo sistematicamente e precisamente os volumes que se deslocam do norte da Lagoa dos Patos e os volumes que chegam pelo Canal de São Gonçalo. Também não medimos os volumes que saem pelos Molhes da Barra, nem conhecemos adequadamente o processo que impõem maior ou menor vazão de descarga, exceto por alguns parâmetros elementares, como o nível do mar na costa". Depois de 83 anos do evento extremo de 1941 estamos em situação de vulnerabilidade no campo da previsão científica de eventos que se aproximam rapidamente. Isto é muito preocupante.
Quero dar uma contribuição indireta aos colegas do Comitê e a Comunidade. Vou chamar de "referencial histórico" que acredito ter relevância limitada e distante de qualquer precisão. É levar em consideração os ciclos naturais do clima/tempo e que são estudados pela meteorologia. Sempre considerando que a ação humana modificando a espacialidade pode alterar os resultados e efeitos de um fenômeno do passado numa área urbana ou rural. Ou seja, olhar para o passado não é reproduzir o presente.
Mas insisto que pode ser um referencial...
Vou pegar apenas dois exemplos:
1)No dia 15 de outubro de 1873 as águas trazidas pela Lagoa dos Patos, novamente romperam o limite do cais: “Com a descida das águas do Guaíba, encheu extraordinariamente nossa baía. A água, na rua Riachuelo, chegou em alguns lugares até a calçada. A Praça do Comércio e o Mercado, ficaram quase circundados de água, atracando as lanchas na banca do peixe. Os terrenos do litoral, assim como o pântano estão todos alagados (...) as águas invadiram quase todos os terrenos da Caridade Nova. O caminho que vai a Capitania ficou interceptado pelas águas. Segundo afirmaram pessoas idôneas é uma cheia que há longos anos não tem tido igual”. (Diário do Rio Grande, 15 de outubro de 1873). Este caso pode ser comparado com Porto Alegre pela informação de que a elevação das águas no Guaíba chegou a 3,50 metros nesta enchente de 1873.
2)Na enchente de 1941, o Guaíba chegou a 4,76 metros que era o recorde até então registrado. O impacto em Rio Grande alcançou amplos trechos da área urbana e manteve uma lâmina de água por 34 dias na Ilha da Torotama.
Os dois exemplos impactaram Rio Grande. O primeiro de maneira mais "branda" e o seguro "severa" e longa em dias de duração.
Argumento que as medições no Guaíba junto a Porto Alegre são um referencial paradigmático preliminar para uma "aproximação" de efeitos que ocorrerão na Lagoa dos Patos e, especialmente, em Rio Grande.
Precisamos pensar em cenários do tipo de impacto que poderia causar na Barra do Rio Grande uma elevação do Guaíba em 5,08 metros como foi registrado em Porto Alegre neste dia 4 de maio .
No dia 16 de maio de 1941 o nível da Lagoa dos Patos na régua de medição do Porto Novo foi de 1,83 metros e na mediação da Barra foi de 1,45 metros. Estas cotas levaram a inundação de pelo menos 1/3 da área urbana (conforme Relatório da Enchente de 1941 - Prefeitura Municipal do Rio Grande).
Outro referencial é acompanhar o impacto da enchente em municípios da Lagoa dos Patos como Tapes, Arambaré e, especialmente, São Lourenço do Sul. Esta última localidade é um ótimo referencial para observar a elevação do nível da Lagoa e acelerar o processo de informar as populações em risco para buscarem residências de familiares ou amigos salvaguardando parcialmente seus bens. E também fazer o encaminhamento dos que serão atingidos para áreas públicas destinadas a sua permanência durante o período de duração do evento.
A dimensão da enchente estará ligada a altura (cota) que a Lagoa alcançara em Rio Grande. Os números que surgirem na régua de medição serão fundamentais para dimensionar o impacto da enchente.
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