Fotógrafo Carlos Cesar (1868). Acervo: Museu Histórico Nacional. |
Vamos esclarecer aspectos da fotografia?
Foi dada a dica de que eram mulheres e crianças paraguaias em 1868. Portanto, estamos num período crítico da Guerra do Paraguai com o avanço das forças militares da Tríplice Aliança rompendo a resistência bélica de Solano Lopes. As localidades paraguaias vão sendo tomadas e uma legião de civis famélicos vão surgindo na marcha dos Aliados (Brasil, Argentina e Uruguai).
Portanto, o contexto é de "guerra" e as resultantes misérias materiais e danos psíquicos decorrentes dos conflitos que atingem gravemente a população civil e militar. As condições de vida destes personagens já poderiam ser comprometidas em termos alimentares antes do conflito, mas, na ausência desta informação, vamos nos deter na imagem do ano de 1868.
A Guerra do Paraguai teve início em dezembro de 1864 e se tornou dramática para a população civil a partir da superação da resistência das fortificações paraguaias, em especial, de Humaitá, a partir de fevereiro de 1868. Esta fotografia deve remeter a alguns meses depois de fevereiro e o olhar das mulheres e crianças é de desconsolo e apreensão: milhares de combatentes já haviam morrido ou foram aprisionados e possivelmente, pais e maridos dos personagens da fotografia, tiveram este destino. O território estava sendo ocupado e os combates foram verdadeiras carnificinas: dezenas de milhares de militares brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios morreram e muitas localidades viraram ruínas.
O maior medo era temer o invasor ou não o ter temido o suficiente? A população foi arrastada para o conflito e o recrutamento de crianças pelo governo paraguaio se tornará cada vez mais acentuado. Qualquer inspiração de aceitar a rendição seria considerada traição o que torna o nível de tensão ainda maior.
Os olhares estão apavorados pela dramaticidade do conflito e a bipolaridade da situação "lealdade e traição"? Estão tensos porque um fotógrafo armou uma parafernália de apetrechos que poderia captar as suas almas e deixá-los despojados de desejo? Eles já haviam visto uma máquina fotográfica em que um homem se esconde atrás de um pano e após ele corre rapidamente com um pedaço de vidro nas mãos para revelar suas almas com líquidos desconhecidos?
Ou estão tensos por toda a miséria e as desgraças que estavam vivendo nos últimos três anos?
As expressões faciais são de indígenas, no caso de mulheres e crianças Guaranis que povoaram o Paraguai desde aproximadamente 2 mil anos no passado e viveram o modo de vida guarani, o modo de vida missioneiro e o modo de vida dos governos caudilhos paraguaios a partir de José Gaspar Francia.
Pensando o tempo da técnica, a fotografia não era automática e o obturador precisava ficar aberto um tempo razoável para captar a luz e formar a imagem no colódio da placa. As crianças, com sua natural hiperatividade, tinham maior dificuldade em ficarem imóveis. Isto explica que, apesar dos gritos do fotógrafo insistindo que ninguém movimentasse a cabeça, pelo menos três meninos ficaram sem nitidez em seu rosto, pois se movimentaram durante a exposição.
Delirei ao dizer que o fotógrafo gritou?
Possivelmente não, pois ele deveria estar muito tenso pelo nível de dificuldade de manter tantos personagens juntos e estáticos, de ter de preparar a chapa com colódio úmido somente na hora da fotografia e correr para obter a imagem. Terminar a exposição no tempo correto, que dependia de sua intuição em calcular a luz que havia no ambiente: fechar o obturador da máquina cedo ela ficaria escura e deixar tempo demais aberto ela ficaria clara e os personagens fantasmagóricos. Ser fotógrafo era muito difícil nesta época e assim permaneceu por longas décadas...
Se pensarmos hoje, numa fotografia digital em que se clica e não se gostou do resultado é só deletar Neste período, deletar significa ter perdido a chance de realizar a fotografia e ter gasto um material químico que era muito caro. Os recursos técnicos eram tão limitados que os objetos e pessoas tinham de estar imóveis para não ficarem borrados.
Salta aos olhos na fotografia que as crianças possuem o abdômen expandido, casos clássicos de subnutrição e contaminação por verminoses. A pobreza dos anos de guerra devem ter dificultado ainda mais o consumo de alimentos, pois, se constata pela espessura do braço deste menino da foto, um nível avançado de subnutrição. Aprendi com leituras de material dos "Médicos sem Fronteira" que para identificar a subnutrição é feita a medida da espessura do braço.
Percebemos um vínculo familiar explícito: a debilitada senhora é a mãe da criança que está à esquerda (segurando a sua mão) e da criança da direita que está junto a ela. Pela posição do outro menino à direita, possivelmente, sejam irmãos. O olhar da mulher está perdido num horizonte que parece não trazer mais nada de esperança. Seus seios caídos, evidenciam que eles muito amamentaram, e ao seu vigor juvenil cedeu e se impôs uma profunda magreza dos tempos difíceis da guerra e da difícil luta pela vida.
Inúmeras mães viram os seus filhos morrerem de fome ou doenças (como cólera) ou sendo recrutados ainda crianças para morrerem numa guerra insana que já estava perdida desde 1868. Longe do cenário do confronto, milhares de mães brasileiras, argentinas e uruguaias recebiam a informação de que seus filhos não retornariam para casa, pois, morreram nos combates ou por doenças que dizimavam os acampamentos dos Aliados.
Uma destas mães, conseguiu autorização para ir com seu marido e seus dois filhos para o front da Guerra: a baiana Ana Néri que atuou como enfermeira em hospitais de Salto, Corrientes, Humaitá e Assunção. Ela atendeu inúmeros soldados e com os parcos recursos medicamentosos e hospitalares da época, buscou abrandar o sofrimento e promover a cura. Apesar dos esforços, c em salvar vidas ela não pode evitar que um de seus filhos morressem no conflito. Além deste soldado, entre cinquenta e cem mil brasileiros morreram lutando em território paraguaio!
Por interesse do fotógrafo ou sugestão de alguém que estava presente, foi colocada a cabeça de um "puma" no chão, na frente dos fotografados. A esquerda está a pata do animal e a direita a sua cabeça. O cenário se torna mais plausível se pensarmos que é a pele do puma que está formando um tapete que está no chão em frente aos quatro meninos.
Num primeiro olhar este belíssimo felino parece um leão! Ele é chamado de onça-parda, suçuarana, leão-baio ou puma. É o mamífero terrestres com maior distribuição geográfica no Ocidente. Mede até 1,55m e pesa até 72kg, vivendo cerca de 9 anos. Ele é um dos símbolos do pampa platino e a documentação o retrata no Rio Grande do Sul desde a década de 1620 com as primeiras incursões dos jesuítas espanhóis no noroeste Rio-grandense. O puma surge como mais um elementos que constitui o cenário desta tragédia.
Estas são apenas observações preliminares.
Uma fotografia permite leituras multifacetadas da temporalidade social, política, econômica, técnica, das subjetividades, das construções imagéticas com o "leitor visual", com as intencionalidades do fotógrafo etc.
Que outros detalhes vocês observaram neste precioso momento congelado de um tempo que se esgotou há 152 anos no passado, mas, que deixou registros visuais e possibilidades de leituras de suas materialidades?
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