Porto do Rio Grande em 1908

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domingo, 23 de fevereiro de 2020

O ENTRUDO - JEAN DEBRET

Cena das festividades do entrudo nas ruas do Rio de Janeiro. A escrava está sendo agarrada e tendo o rosto coberto por farinha para que a água lançada formasse uma massa. Aquarela de Jean Debret, 1823. *Não é tão difícil imaginar o entrudo ao observar uma atividade de recepção de bixos nas universidades que ainda praticam este tipo de recepção aos novos alunos.  


Detalhe da cena: borrifador de água ou outro líquido mais sofisticado. Mais ao fundo da imagem outra guerra de limões está ocorrendo. Um senhor de guarda-chuva parece seguro mas as reclamações de brasileiros e estrangeiros eram inúmeras por também serem atingidos.  

Detalhe da cena: limão-de-cheiro sendo vendido por uma escrava. 
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O entrudo foi a primeira modalidade do que passará a se chamar carnaval, basicamente já no século XX no Brasil. Sua introdução recua ao século XVI e realizada pelos portugueses que já a realizavam, em diferentes modalidades, em Portugal desde o século XII. Festividades populares que recuavam a Grécia e a Roma, como as dionísicas e as saturnais, apresentavam manifestações de euforia com danças, cortejos musicais, encenações e provocações. Em tempos medievais significava o período de tolerância para a "bagunça" antes da quaresma e suas restrições religiosas. No Brasil se manifestou com diferente adaptação: voltada a brincadeiras familiares dentro das casas com lançamento de limão-de-cheiro; de bagunça generalizada e muitas vezes agressiva, com lançamento de água, farinha e urina nos passantes ou entre vizinhos. As reclamações eram tantas que se buscou desde a década de 1830 a proibição desta prática que persistiu ao longo do século XIX. A organização do carnaval através clubes, de ranchos e blocos, de organização nos desfiles foi esvaziando esta manifestação mais agressiva e que teve três século de vida no Brasil.  
O pintor Jean Debret, assim relatou o que observou durante as festas de entrudo no Rio de Janeiro entre 1816 e 1831. Ele explica como era produzido o “limão-de-cheiro” que foi amplamente usado nas festividades de entrudo pelo Brasil.
"O carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra em geral nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas mais frequentadas, nem às corridas de cavalos chucros tão comuns na Itália.
Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões-de-cheiro, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas que todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera.
O limão-de-cheiro, único objeto dos divertimentos do carnaval, é um simulacro de laranja, frágil invólucro de cera de um quarto de linha de espessura e cuja transparência permite ver-se o volume de água que contém. A cor varia do branco ao vermelho e do amarelo ao verde; o tamanho é o de uma laranja comum; vende-se por um vintém e as menores a dez réis. A fabricação consiste simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho médio, cujo caule é substituído por um pedacinho de madeira de quatro a cinco polegadas que serve de cabo, e mergulhá-la na cera derretida.
        Operada essa imersão, retira-se o fruto ligeiramente coberto de cera e mergulha-se nágua fria, a fim de que se revista de uma película de um quarto de linha de espessura, bastante resistente, entretanto. Parte-se em seguida esse molde, ainda elástico, a fim de retirar a laranja e, aproximando-se as partes cortadas, solda-se o molde de novo com cera quente, tendo-se o cuidado de deixar a abertura formada pelo pedaço de madeira para a introdução da água perfumada com que deve ser enchido o limão-de-cheiro.
O perfume de canela, que se exala de todas as casas do Rio de Janeiro durante os dois dias anteriores ao carnaval, revela a operação, fonte dos prazeres esperados.
Para o brasileiro, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às cinco horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros já espalhados nas ruas a fim de providenciarem para o abastecimento em água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes e das vendas.
Vemo-los aí, cheios de alegria e de saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis.
Nesses dias de alegria, os homens de cor mais turbulentos, embora sempre respeitosos para com os brancos, reúnem-se depois do jantar nas praias e nas praças, em torno dos chafarizes, a fim de se inundarem de água, mutuamente, ou de nela mergulharem uns aos outros por brincadeira; a vítima, ao sair do banho, pula e faz contorções grotescas, com as quais dissimulam às vezes o seu amor-próprio ferido.
Quanto às mulheres negras, somente se encontram velhas e pobres nas ruas, com o seu tabuleiro à cabeça, cheio de limões-de-cheiro vendidos em benefício dos fabricantes.
Mas os prazeres do carnaval não são menos vivos entre um terço pelo menos da população branca brasileira; quero referir-me à geração de meia-idade, ansiosa por abusar alegremente, nessas circunstâncias, de suas forças e sua habilidade, consumindo a enorme quantidade de limões-de-cheiro disponíveis.
Domingo ainda, mas depois do almoço, o vendeiro procura provocar o vizinho da frente, com incidentes insignificantes, a fim de atraí-lo à rua e jogar-lhe o primeiro limão ao rosto.
Alguns jovens franceses empregados no comércio, passeiam como se fossem sentinelas avançadas, armados de limões, e aproveitam a oportunidade para inundar uma senhora, também francesa, ocupada no fundo da loja semifechada.
Vêem-se também jovens negociantes ingleses, consagrando de bom grado 12 a 15 francos a um quarto de hora de brincadeira lícita, passear com orgulho e arrogância, acompanhados por um homem negro vendedor de limões, cujo tabuleiro esvaziam pouco a pouco, jogando os limões às ventas de pessoas que nem sequer conhecem.
Alguns gritos, entrecortados de gargalhadas, revelam ao locatário do primeiro andar, cujo cómodo de frente já foi esvaziado de seus móveis, por precaução, que chegou a hora de abrir as janelas, ou para evitar que se quebrem os vidros ou para se preparar ele próprio para a batalha de limões.
Alguns curiosos assomam aos balcões e logo desaparecem e a manhã toda decorre entre escaramuças. Depois da refeição, entretanto, sentindo-se todos dispostos ao combate, correm às janelas e alegremente solicitam, de longe, e com gestos, licença para começar; ao mais ligeiro assentimento alguns limões trocados com habilidade e pontaria dão o sinal do ataque geral; e, durante mais de três horas, vê-se grande quantidade desses projéteis hidróferos cruzando-se de todos os lados nas ruas da cidade e estourando contra um rosto, um olho ou um colo.
A ducha decorrente, de mais ou menos um copo de água aromática, suporta-se agradavelmente em vista do calor extremo da estação.
É natural que, após semelhante combate, toda a sociedade de um balcão, molhada como ao sair de um banho, se retire para mudar de roupa; mas logo volta com o mesmo entusiasmo. E uma moça sempre se orgulha do grande número de vestidos que lhe molharam nesses dias gloriosos para seus dotes de habilidade" (Jean Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, Paris, 1834-1839). A versão brasileira é: Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1940.  

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