Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

SIMÕES LOPES NETO - CONTRABANDISTA

João Simões Loes Neto. https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/5f/Jo%C3%A3o_Sim%C3%B5es_Lopes_Neto.jpg/200px-Jo%C3%A3o_Sim%C3%B5es_Lopes_Neto.jpg


      Entre os contos de João Simões Lopes Neto (1865-1916) , “Contrabandista” (1912) é um dos meus prediletos. 
         Mergulhar no fluxo narrativo do linguajar gauchesco, forte influência espanhola com um arreio português, nos ajuda a transportar a imaginação para outros cenários muito diferentes da vida urbana. Com maestria Simões Lopes Neto faz referências àquele cotidiano rico em interação com a natureza e pobre em objetos manufaturados e hábitos refinados.
       O uso das palavras que musicalmente são plantadas se reveste de essencialidade para que o leitor rapidamente caracterize tipos sociais, cenários ruralizados, a flora e a fauna do pampa e os conflitos desta sociedade em que as fronteiras culturais se aproximam e as fronteiras políticas as afastam.
         Deleitem a sonoridade da leitura deste conto gauchesco.
  
CONTRABANDISTA
“Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí. Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!... Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe. Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas. Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro. Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num - caim! caim! caim! - de desespero. Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!... Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán... Era um pagodista! Aqui há poucos anos - coitado! - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo. A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha - pro caso, uma moça -, que era o - santo-antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda. E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila. E noiva, casadeira, já era. E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo. O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha. Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu... Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro. Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados. Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito. Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea! Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!... Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!. Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros... Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam. Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis... Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra 1uxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!... E logo com quem!... Com a gauchada!... Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas cousas. Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saia de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d'arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro. Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase. Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam... Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas. Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados. A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo... Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!... Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se. Rompeu a guerra do Paraguai. O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!... Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca! Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui... Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas... Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje. O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi. Como disse, na madrugada vésp'ra do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha. Passou o dia; passou a noite. No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada. Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá. Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala. Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados. A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer. Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo. Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios. Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera. As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam. Entardeceu. Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente. A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos... E rindo e chorando estava, sem saber porque... sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro: - Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!... Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva... Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo. E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos. Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado... Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada... Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse: - A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo! A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o. Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira... Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!... Então rompeu o choro na casa toda”. Descrição: criar um blog
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9ª ed., Porto Alegre: Globo, 1976. (Col. Província), p. 53-56.

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