Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CARROÇAS E GUASCAS NO CAMINHO DO MAR

Cena corriqueira na Região Platina e com semelhanças em relação à descrição de João Roscio. Acervo:
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 
        

O engenheiro militar Francisco João Roscio, nascido na Ilha da Madeira, prestou relevantes serviços administrativos e cartográficos à Coroa Portuguesa no século 18. Ele também produziu um escrito muito elucidativo da sociedade rio-grandense em formação na transição entre a ocupação espanhola e a retomada portuguesa no Rio Grande do Sul. O título do manuscrito existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é Compêndio Noticioso do Continente do Rio Grande de S. Pedro..., datado de 1781.
Roscio refere-se a difícil vida no sul do Brasil naquela época e relata praticas cotidianas ligadas ao meio rural, especialmente, as atividades da pecuária. Neste cenário surge referência ao caminho da praia ou Caminho da Costa do Mar que até algumas décadas atrás, inclusive os ônibus utilizavam para a ligação terrestre entre Rio Grande e o Chuí/Santa Vitória do Palmar. Também é apresentada uma definição para a palavra até hoje popular ao gaúcho que é “guasca”.
Uma volta ao tempo das grandes carroças que viravam verdadeiras casas móveis precárias ou ausentes de qualquer luxo. Tempos antigos dos tropeiros, gaudérios e changadores; dos conflitos entre luso-brasileiros e castelhanos; dos animais selvagens atacando as caravanas e dos rodeios. Era o tempo de uma modalidade de civilização, fundada na pecuária e na guerra, que marcaria profundamente a história do Rio Grande do Sul.  

AS CARAVANAS DO SUL
“O modo com que esta gente e povoadores costumam viver e habitar estas terras é bastante rústico e agreste. As casas são umas pobres cabanas sem cômodos nem agasalhos. Em muitas delas serve de porta um couro cru de boi pendurado como cortina. Os mantimentos de que geralmente se servem são a carne de vacas e o leite sem exceção de quaresma ou dia de jejum. O seu tráfico é com bois e cavalos de que tiram os maiores interesses tanto para os particulares como para os direitos reais, porque pagam o quinto destes animais e couros. As terras fechadas ou terminadas entre as Raias declaradas nesta relação todas estão povoadas mas todas desertas. Cada morador não se contenta com poucas léguas de terra entendendo que todas lhe serão precisas ainda que só se servem de uma insignificante parte junto à sua cabana e por isso ainda que toda a campanha está deserta todos os campos estão dados e tem senhorio. O comércio se faz ou pela barra do Rio Grande em embarcações competentes ou por terra para a Vila da Laguna onde embarcam os gêneros de exportação e desembarcam outros de troca ou pequenas mercadorias.
O transporte por terra se faz em carretas a castelhano que são uns volumes monstruosos e mal fabricados que ocupam uma grande extensão em marcha. As suas rodas, o menos que tem são 9 palmos de diâmetro feitas de raios toscamente cortados ao machado. Os seus cubos são uns troncos de árvore, cortados em três palmos de comprido e 2 e meio de grosso ou de diâmetro. Não são ferradas nem cavilhadas mas só apertadas à força da massa. Os eixos são uns braços de madeira toscos e delgados a proporção da máquina, e por isso se destroem com facilidade ou quebrando ou tomando fogo com a fricção. É preciso levar algum de sobressalente ou ir cortando onde se encontrem para suprimento. Os leitos das carretas tem 15 a 16 palmos; são acompanhados pelos lados com uma parede alta de palha com teto circular coberto de couro cru de vaca de forma que fica uma cabana ou casa móvel. As testas são cobertas com couros pendurados. A lotação de peso que costuma carregar cada uma destas carretas de molhado são 4 pipas que se transportam em barris grandes que possam acomodar-se e descarregar-se nas passagens dos rios e concertos do eixo: o qual não tem peso nem chaveiro no leito da carreta e se segura ao seu engradamento com correias de couro em grande quantidade e muitas voltas e laçadas; cujas correias chamam guascas. São cortadas em forma circular e por isso de couro inteiro se tira uma só e longa correia ou guasca cortada das extremidades sempre a roda a acabar no centro em um ponto. E de seco são 125 arrobas mas contando as taras provimentos para a jornada, camas, caixas de carpintaria que trazem para as precisões, outras miudezas e gente de transporte que também carregam, chegam muitas vezes a levar mais de 300 arrobas, o que concorre para uma morosa jornada. Em caminho plano e duro são levados por seis juntas de bois, tanto cheias como vazias. Mas em qualquer pequena rampa ainda que seja doce que encontrem ou em areia branda, são precisas de dez a doze juntas e muita fadiga e trabalho para se vencer, não obstante serem bois muito fortes e vigorosos.
         O caminho da Costa do Mar é pelas praias onde a areia molhada e aplanada com as ondas se une e endurece tanto como o mais duro terreno: por serem muito finas e próprias para isso. Cada carreta com seus bois ocupam mais de 100 palmos de estrada. Nenhuma marcha com menos de 30 ou 40 bois porque, os que trabalham em um dia não ficam capazes de trabalhar no seguinte, e, é preciso reservar como também descontar alguns que arrebentam no trabalho, outros que se matam para carnear e alguns que alguma vez carregam as onças, apesar de todas as vigilâncias. Na lança da carreta anda pendurado um pau ou descanso para consolação e alívio dos bois do coice que sem este descanso ou suporte, seria impraticável suportar qualquer inclinação de tão grande peso. As marchas se fazem das 9 horas da manhã até às 3 ou 4 da tarde, a grande trote ou largo passo, até se encontrar sítio de pasto para os animais e onde se cuida em todos os indivíduos o resto do dia.
Os peões e carreteiros fazem sentinela aos animais de noite cercando-os com fogos para afugentar as onças, até que de manhã os ajuntam e laçam ao pé das carretas para os forçarem ao jugo; porque estes bois ou são bravos ou com fraca diferença (...) O modo de criação dos bois e cavalos também é tal qual permite a natureza. Deixam-se crescer e ter produção nos campos sem mais cuidado que o de os perseguir todas as tardes a longo galope até os juntarem no meio de um grande campo, limpo de matos, onde costumam ter uma estaca ou pau verticalmente que serve de ponto de vista e termo fixo à roda do qual dormem os animais perseguidos da batida do campo. A este lugar chamam rodeio. Servem-se também de alguns cercados ou grandes currais diante de sua porta onde recolhem de noite algumas vacas de leite, aquelas pessoas que tem curiosidade de fazer o queijo e a manteiga. No tempo conveniente ao transporte, matam todos aqueles bois que podem ter couros de valor de 12 até 16 tostões que é a sua maior renda e colheita; e a carne que não podem comer deixam no campo às aves de rapina de que abundam aqueles terrenos. Semeia-se algum trigo, pouco, em uns cercados ou grandes hortas que formam com madeiras que tiram dos matos sem ordem de escolha; porque nenhum entende nem pretende firme estabelecimento na Província que julgam será com facilidade invadida pelos castelhanos”. 

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