Porto do Rio Grande em 1908

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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A GUERRA NA IMPRENSA



           Durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) a maioria da imprensa do Rio Grande do Sul participou discursivamente do conflito. A Revolução não se manteve nos limites dos campos de batalha, mas, iniciou bem mais cedo nos conflitos de ideais e fricções político-partidárias entre liberais e conservadores. Em tempos de enfrentamento, os discursos se armaram com voracidade e a busca da veracidade na informação chegou a ficar para segundo plano. Este tema, tão atual em tempos de fake news, foi abordado no artigo a seguir, o qual é parcialmente reproduzido:

         “A guerra que durou quase um decênio não foi travada apenas pelas armas, pois, ao lado destas, foram utilizados verdadeiros arsenais de palavras, constituindo-se, à parte do enfrentamento unicamente bélico, uma batalha de manifestos que teria no meio impresso um contumaz divulgador. Em todo o Rio Grande do Sul, desde os maiores centro urbanos até os mais longínquos rincões, circularam folhas impressas que sustentaram o conflito discursivo entre rebeldes e legalistas, de modo que a gênese da imprensa gaúcha esteve marcada de forma irretorquível pelas relações com o contexto revolucionário de então. Ocorreria um grande crescimento de atividades jornalísticas, uma vez que, numa localidade onde houvesse um jornal favorável a uma das partes em conflito, era natural que o grupo adversário também buscasse organizar sua folha de modo a combater o inimigo. Desse modo, num processo de ação e reação, o número de jornais circulando na província multiplicou-se desde a época pré-revolucionária e durante os primeiros anos da Revolução Farroupilha. A imprensa rio-grandense nascia assim sob a égide do partidarismo, uma vez que os jornais tinham por característica essencial o engajamento partidário, buscando sustentar uma causa e derruir a do adversário. Os periódicos serviam à sustentação do confronto discursivo, demarcavam os estereótipos do aliado e do inimigo, do que era “o nosso” e o que era “dos outros”, numa perspectiva muitas vezes maniqueísta de apresentar aos leitores uma versão do “bem” e do “mal” O debate dava-se no campo político-ideológico, mas, por vezes, descambava para os ataques pessoais, em valia qualquer argumento para convencer a opinião pública sobre a justeza do lado que se buscava sustentar. O conflito no campo discursivo buscava assim legitimar as formas de agir e pensar do aliado, bem como deslegitimar as do adversário, de modo que rebeldes e legalistas se digladiariam à extenuação por meio do papel impresso. Nessa época, as páginas dos jornais recendiam a pólvora e a chumbo, quase como nos campos de batalha, e o sangue também parecia correr pelo papel. A linguagem era forte e vibrante, muitas vezes direcionava-se mais à emoção do que à razão, no constante intento de promover a exaltação da opinião pública.    
        As matérias editoriais, as transcrições de notícias e a publicação de manifestos eram notoriamente calcadas na intenção de incitar os espíritos em favor de uma das causas em jogo, não importando, por diversas vezes, os argumentos de ordem ideológica, utilizando-se, isto sim, um jogo de palavras que movesse os sentimentos dos leitores. Ao lado desse tipo de construção discursiva baseada na instigação de ódios e paixões partidaristas, também se organizava uma prática doutrinária por meio da imprensa, objetivando a didática difusão dos princípios então em debate. Ocorria nessa época, por meio do periodismo, uma notável articulação de discursos que, emocionais ou racionais, tinham por única meta a vitória na batalha travada através das palavras, inaugurando-se uma tradição que se reproduziria em outros conflitos bélicos intraoligárquicos da história sul-rio-grandense. Nesse sentido, os farroupilhas eram apontados por meio de sua imprensa como os propugnadores de uma causa justa, acima de tudo em nome da liberdade, enquanto os legalistas eram descritos como retrógrados, sebastianistas e conservadores. Por outro lado, os jornais legalistas consideravam estes como os defensores da ordem, enquanto os rebeldes eram qualificados como anarquistas e subversivos que desejavam corromper e destruir as instituições estabelecidas. 
           A perspectiva dos periódicos voltava-se essencialmente para a questão dos temas provinciais, mas demonstravam conhecimento de causa ao debater a conjuntura nacional e internacional. Segundo os farroupilhas, o “espírito da revolução” se espalharia pelo país, pela América e pela Europa, e era seu desejo que a “liberdade” fosse a vencedora nos “dois mundos”, quer seja, no contexto americano e europeu; já os governistas propugnavam que a ameaça rebelde buscava espalhar-se pelo mundo, mas que este “mal” logo viria a ser controlado pelos adeptos da ordem institucional. Além do combate ideológico, os jornais, por vezes, baixavam o nível da discussão, levando o confronto para o campo do insulto, de modo que o adversário chegava a ser descrito como figuras sanhudas, selvagens e sanguinárias que levariam a província à perdição. Os dois lados do confronto bélico utilizavam-se também da imprensa para desmentir o inimigo. Dessa maneira, para os jornais farrapos ou legalistas, as folhas provenientes dos adversários estariam a desvirtuar a função da imprensa, ao omitir notícias, adulterar informações, ou mentir desbragadamente, com o intuito de enganar a opinião pública. De acordo com essa perspectiva, nas versões dos jornais, as batalhas sempre eram vencidas pelos aliados, que contavam baixas mínimas e infringiam aos adversários derrotas acachapantes e aniquiladoras. 
        Seguindo esta modalidade discursiva, predominava uma prática essencialmente opinativa em detrimento do caráter informativo, pois, além dos longos enunciados em que o jornal deixava evidenciado seu posicionamento partidário, a própria divulgação de notícias era utilizada como arma de convencimento sobre a causa e os propalados sucessos de lado a lado. Era também intenção dos redatores das folhas demonstrar que o responsável pelas dificuldades advindas da guerra era sempre o inimigo, quer seja, para os legalistas, os culpados pela continuidade da luta eram os farroupilhas por terem anarquizado as instituições, ao passo que os farrapos imputavam a culpa pelo prosseguimento das lides bélicas aos governistas por insistirem na manutenção de um estado centralizador e concentrador de poderes. Nesse sentido, os jornais muito esforçavam-se para mostrar à população a destruição trazida pela guerra, a qual só terminaria, de acordo com o prisma do engajamento, se fossem exterminados os rebeldes ou se a revolução saísse vitoriosa” (ALVES, Francisco das Neves. O Periodismo Gaúcho no século XIX: breves impressões históricas. Biblos. Rio Grande: ICHI-FURG, 2009).  


          Ilustração: Jornal anti-farroupilha “O Mercantil do Rio Grande” de 21-10-1840. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.

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