Durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) a
maioria da imprensa do Rio Grande do Sul participou discursivamente do conflito.
A Revolução não se manteve nos limites dos campos de batalha, mas, iniciou bem
mais cedo nos conflitos de ideais e fricções político-partidárias entre
liberais e conservadores. Em tempos de enfrentamento, os discursos se armaram
com voracidade e a busca da veracidade na informação chegou a ficar para
segundo plano. Este tema, tão atual em tempos de fake news, foi abordado no artigo a seguir, o qual é parcialmente
reproduzido:
“A guerra que durou quase um decênio não foi
travada apenas pelas armas, pois, ao lado destas, foram utilizados verdadeiros
arsenais de palavras, constituindo-se, à parte do enfrentamento unicamente
bélico, uma batalha de manifestos que teria no meio impresso um contumaz
divulgador. Em todo o Rio Grande do Sul, desde os maiores centro urbanos até os
mais longínquos rincões, circularam folhas impressas que sustentaram o conflito
discursivo entre rebeldes e legalistas, de modo que a gênese da imprensa gaúcha
esteve marcada de forma irretorquível pelas relações com o contexto
revolucionário de então. Ocorreria um grande crescimento de atividades
jornalísticas, uma vez que, numa localidade onde houvesse um jornal favorável a
uma das partes em conflito, era natural que o grupo adversário também buscasse
organizar sua folha de modo a combater o inimigo. Desse modo, num processo de
ação e reação, o número de jornais circulando na província multiplicou-se desde
a época pré-revolucionária e durante os primeiros anos da Revolução
Farroupilha. A imprensa rio-grandense nascia assim sob a égide do partidarismo,
uma vez que os jornais tinham por característica essencial o engajamento
partidário, buscando sustentar uma causa e derruir a do adversário. Os
periódicos serviam à sustentação do confronto discursivo, demarcavam os
estereótipos do aliado e do inimigo, do que era “o nosso” e o que era “dos
outros”, numa perspectiva muitas vezes maniqueísta de apresentar aos leitores
uma versão do “bem” e do “mal” O debate dava-se no campo político-ideológico,
mas, por vezes, descambava para os ataques pessoais, em valia qualquer
argumento para convencer a opinião pública sobre a justeza do lado que se
buscava sustentar. O conflito no campo discursivo buscava assim legitimar as
formas de agir e pensar do aliado, bem como deslegitimar as do adversário, de
modo que rebeldes e legalistas se digladiariam à extenuação por meio do papel
impresso. Nessa época, as páginas dos jornais recendiam a pólvora e a chumbo,
quase como nos campos de batalha, e o sangue também parecia correr pelo papel.
A linguagem era forte e vibrante, muitas vezes direcionava-se mais à emoção do
que à razão, no constante intento de promover a exaltação da opinião pública.
As matérias editoriais, as transcrições de notícias e a publicação de
manifestos eram notoriamente calcadas na intenção de incitar os espíritos em
favor de uma das causas em jogo, não importando, por diversas vezes, os
argumentos de ordem ideológica, utilizando-se, isto sim, um jogo de palavras
que movesse os sentimentos dos leitores. Ao lado desse tipo de construção
discursiva baseada na instigação de ódios e paixões partidaristas, também se
organizava uma prática doutrinária por meio da imprensa, objetivando a didática
difusão dos princípios então em debate. Ocorria nessa época, por meio do
periodismo, uma notável articulação de discursos que, emocionais ou racionais,
tinham por única meta a vitória na batalha travada através das palavras,
inaugurando-se uma tradição que se reproduziria em outros conflitos bélicos
intraoligárquicos da história sul-rio-grandense. Nesse sentido, os farroupilhas
eram apontados por meio de sua imprensa como os propugnadores de uma causa
justa, acima de tudo em nome da liberdade, enquanto os legalistas eram
descritos como retrógrados, sebastianistas e conservadores. Por outro lado, os
jornais legalistas consideravam estes como os defensores da ordem, enquanto os
rebeldes eram qualificados como anarquistas e subversivos que desejavam
corromper e destruir as instituições estabelecidas.
A perspectiva dos
periódicos voltava-se essencialmente para a questão dos temas provinciais, mas
demonstravam conhecimento de causa ao debater a conjuntura nacional e
internacional. Segundo os farroupilhas, o “espírito da revolução” se espalharia
pelo país, pela América e pela Europa, e era seu desejo que a “liberdade” fosse
a vencedora nos “dois mundos”, quer seja, no contexto americano e europeu; já
os governistas propugnavam que a ameaça rebelde buscava espalhar-se pelo mundo,
mas que este “mal” logo viria a ser controlado pelos adeptos da ordem
institucional. Além do combate ideológico, os jornais, por vezes, baixavam o
nível da discussão, levando o confronto para o campo do insulto, de modo que o
adversário chegava a ser descrito como figuras sanhudas, selvagens e
sanguinárias que levariam a província à perdição. Os dois lados do confronto
bélico utilizavam-se também da imprensa para desmentir o inimigo. Dessa
maneira, para os jornais farrapos ou legalistas, as folhas provenientes dos
adversários estariam a desvirtuar a função da imprensa, ao omitir notícias,
adulterar informações, ou mentir desbragadamente, com o intuito de enganar a
opinião pública. De acordo com essa perspectiva, nas versões dos jornais, as
batalhas sempre eram vencidas pelos aliados, que contavam baixas mínimas e
infringiam aos adversários derrotas acachapantes e aniquiladoras.
Seguindo esta
modalidade discursiva, predominava uma prática essencialmente opinativa em
detrimento do caráter informativo, pois, além dos longos enunciados em que o
jornal deixava evidenciado seu posicionamento partidário, a própria divulgação
de notícias era utilizada como arma de convencimento sobre a causa e os
propalados sucessos de lado a lado. Era também intenção dos redatores das
folhas demonstrar que o responsável pelas dificuldades advindas da guerra era
sempre o inimigo, quer seja, para os legalistas, os culpados pela continuidade
da luta eram os farroupilhas por terem anarquizado as instituições, ao passo
que os farrapos imputavam a culpa pelo prosseguimento das lides bélicas aos
governistas por insistirem na manutenção de um estado centralizador e
concentrador de poderes. Nesse sentido, os jornais muito esforçavam-se para
mostrar à população a destruição trazida pela guerra, a qual só terminaria, de
acordo com o prisma do engajamento, se fossem exterminados os rebeldes ou se a
revolução saísse vitoriosa” (ALVES, Francisco das Neves. O Periodismo Gaúcho no
século XIX: breves impressões históricas. Biblos. Rio Grande: ICHI-FURG, 2009).
Ilustração: Jornal anti-farroupilha “O Mercantil do Rio Grande” de 21-10-1840. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.
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