Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 13 de julho de 2017

OPERÁRIOS DA FÁBRICA RHEINGANTZ

Saída dos operários da Fábrica Rheingantz (União Fabril) na década de 1930. Acervo: Fototeca Municipal. 

     Em 1873 foi fundada a fábrica Rheingantz &Vater, pioneira no setor da indústria têxtil no sul do Brasil. Em 1891 passa a se chamar União Fabril e em 1970, Inca Têxtil. Porém, a tradição legou até o presente o nome Rheingantz para associar a memória do que ali ocorreu e ao contemplarmos os vestígios materiais que ainda resistem na paisagem urbana. O grande número de trabalhadores que atuavam na empresa, cerca de 1.200, escreveram uma longa história da implementação da Revolução Industrial em Rio Grande.
Desde a década de 1920, a concorrência com empresas, especialmente sediadas em São Paulo, reduziu o mercado da União Fabril num cenário de concentração do capital brasileiro no eixo Rio-São Paulo  que desencadeou uma crise industrial em grande parte dos estados brasileiros. A crise intensificou-se nos anos 1950 e gerou um enfrentamento entre uma tentativa de modernização gerencial com a contratação de uma empresa norte-americana e o confronto com os métodos tradicionais dos mestres alemães que participaram do processo gerencial/artesanal desde a sua fundação. Em 1961, a fábrica foi vendida para o grupo paulista Abdalah e os confrontos/revolta de operários se intensificaram frente ao sucateamento da fábrica. Dois referenciais associados a União Fabril fecharam:  a creche em 1962 e a Sociedade de Mutualidade em 1967. A falência ocorreu em março de 1968.

A profa. Maria Leticia Ferreira (UFPEL) no artigo “Os Fios da Memória: Fábrica Rheingantz entre passado, presente e patrimônio (Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 19, n. 39, p. 69-98, jan./jun. 2013), realizou uma ampla reflexão sobre as noções de trabalho, memória e patrimônio nas narrativas de antigos trabalhadores da Fábrica. Vejamos a seguir algumas passagens desta caminhada reflexiva realizada pela profa Maria Letícia, a partir de entrevistas feitas com ex-operários.

A Fábrica Rheingantz ou União Fabril, foi uma das maiores fábricas têxteis do sul do Brasil surgidas no século XIX. A partir dela a cidade avançou em processos de urbanização com a introdução de sistemas de transporte urbano, tais como o bonde, a implantação de serviços públicos no bairro Cidade Nova, reduto da população imigrante e operária e a dinamização de setores como o ferroviário e o portuário, tendo em vista o fluxo de produção e de matérias-primas. Igualmente, a afirmação de um setor industrial composto por diferentes empreendimentos, aliado ao setor de transportes, como a Viação Férrea e o Porto, consolidou uma classe operária protagonista de vários movimentos políticos e reivindicatórios em Rio Grande.

A categoria “trabalho” aparece como fundamental nas narrativas dos ex-operários, numa amplitude a partir da qual é possível compreender todos os âmbitos da vida nos quais a experiência da fábrica aparece circunscrita. A condição de trabalhador é uma lente pela qual se pode observar a história de toda uma vida, da infância até a senilidade, num percurso não linear e nem sempre bem delimitado. Em algumas entrevistas, ingressar na fábrica como funcionário assumia a ideia de liberdade condicionada, pois possibilitava ao sujeito o convívio com pessoas externas ao ciclo familiar e a participação em uma sociabilidade instaurada dentro dos grupos formados nas seções de trabalho.
A relação estabelecida com as máquinas e o valor simbólico conferido a elas, como elementos de identidade, é um dos eixos sobre os quais se articularam as narrativas. A prática cotidiana do trabalho, associada à curiosidade e à observação, conferia um conhecimento que era manejado e utilizado como forma de distinção dentro da fábrica. Entender o funcionamento da máquina era fundamental para solucionar problemas cotidianos e demonstrar autonomia frente aos conhecimentos de técnicos especializados. É essa aptidão para conhecer materiais e dominar as formas como as máquinas operavam que, na memória, atuava como o diferencial entre o operário do passado e aquele do presente. É possível afirmar que há um consenso memorial sobre esse período anterior, no qual as representações sobre a fábrica giram em torno da “grande família”, dos chefes como rigorosos e justos, dos conflitos como apaziguados ou inexistentes e de acordos possíveis numa ordem que vai perdendo a rigidez frente à necessidade de aumento da produção. A fábrica torna-se o centro de uma vida desejável, e dessa narrativa constrói-se o mito da Idade de Ouro, uma remodelação do passado cuja finalidade é possibilitar a continuidade da existência no presente. No plano discursivo vê-se que o momento que se aproxima da ruptura (o fechamento da empresa) é abordado de maneira fragmentada, instável e controversa. Tudo parece se desordenar quando entra no período que antecedeu ao fechamento, período no qual a desestabilização, a insegurança e o sofrimento impõem-se como sentimentos e representações possíveis.
Inúmeros personagens marcaram a empresa! Um deles era o seu Hilso (era morador do Povo Novo e deu a entrevista em 1998), autodefinido como “o guarda da Rheingantz”. Era ele quem cotidianamente abria o prédio às 7h30min, fechava às 11h30min, reabria às 13h30min e tornava a fechar às 17h30min. Abrindo e fechando uma fábrica vazia, já completamente deteriorada pelo tempo, percorrendo pavilhões silenciosos que em nada lembravam os ruídos dos teares e filatórios, esse homem mantinha ainda um vínculo com a administração da fábrica, localizada na cidade de Pelotas, em função do qual recebia uma pequena remuneração. Seu Hilso, definia seu papel como o de um guardião, o representante do tempo da fábrica, o tempo da memória, que para ele era o da negação do presente.
Espaço entre dois mundos, o do trabalho e o do patrimônio, esse conjunto fabril possibilita que se interrogue sobre as mutações sofridas pelo espaço urbano e as transformações que ocorreram na cidade, que se abre, simbolicamente, pelo signo visual da indústria têxtil. O desaparecimento de um mundo do trabalho idealizado e representado através de categorias, como família, dignidade e juventude, deixou sentimentos de indignação e revolta, substituídos no presente por decepção e silêncio.

Falar desse período terminal da fábrica foi motivo de evitação e tristeza, uma memória impedida, indisponível e, pela força da melancolia, difícil de esquecer. 

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