Saída dos operários da Fábrica Rheingantz (União Fabril) na década de 1930. Acervo: Fototeca Municipal. |
Em 1873 foi fundada a fábrica Rheingantz &Vater, pioneira no setor da indústria têxtil no sul do Brasil. Em 1891 passa a se chamar União Fabril e em 1970, Inca Têxtil. Porém, a tradição legou até o presente o nome Rheingantz para associar a memória do que ali ocorreu e ao contemplarmos os vestígios materiais que ainda resistem na paisagem urbana. O grande número de trabalhadores que atuavam na empresa, cerca de 1.200, escreveram uma longa história da implementação da Revolução Industrial em Rio Grande.
Desde a década de 1920, a concorrência com
empresas, especialmente sediadas em São Paulo, reduziu o mercado da União
Fabril num cenário de concentração do capital brasileiro no eixo Rio-São
Paulo que desencadeou uma crise
industrial em grande parte dos estados brasileiros. A crise intensificou-se nos
anos 1950 e gerou um enfrentamento entre uma tentativa de modernização
gerencial com a contratação de uma empresa norte-americana e o confronto com os
métodos tradicionais dos mestres alemães que participaram do processo gerencial/artesanal
desde a sua fundação. Em 1961, a fábrica foi vendida para o grupo paulista
Abdalah e os confrontos/revolta de operários se intensificaram frente ao
sucateamento da fábrica. Dois referenciais associados a União Fabril fecharam: a creche em 1962 e a Sociedade de Mutualidade
em 1967. A falência ocorreu em março de 1968.
A profa. Maria Leticia Ferreira (UFPEL) no
artigo “Os Fios da Memória: Fábrica Rheingantz entre passado, presente e
patrimônio (Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 19, n. 39, p. 69-98, jan./jun. 2013), realizou uma ampla reflexão
sobre as noções de trabalho, memória e
patrimônio nas narrativas de antigos trabalhadores da Fábrica. Vejamos a seguir
algumas passagens desta caminhada reflexiva realizada pela profa Maria Letícia,
a partir de entrevistas feitas com ex-operários.
A Fábrica Rheingantz ou União Fabril, foi uma
das maiores fábricas têxteis do sul do Brasil surgidas no século XIX. A partir
dela a cidade avançou em processos de urbanização com a introdução de sistemas
de transporte urbano, tais como o bonde, a implantação de serviços públicos no
bairro Cidade Nova, reduto da população imigrante e operária e a dinamização de
setores como o ferroviário e o portuário, tendo em vista o fluxo de produção e
de matérias-primas. Igualmente, a afirmação de um setor industrial composto por
diferentes empreendimentos, aliado ao setor de transportes, como a Viação
Férrea e o Porto, consolidou uma classe operária protagonista de vários
movimentos políticos e reivindicatórios em Rio Grande.
A categoria “trabalho” aparece como
fundamental nas narrativas dos ex-operários, numa amplitude a partir da qual é
possível compreender todos os âmbitos da vida nos quais a experiência da
fábrica aparece circunscrita. A condição de trabalhador é uma lente pela qual
se pode observar a história de toda uma vida, da infância até a senilidade, num
percurso não linear e nem sempre bem delimitado. Em algumas entrevistas,
ingressar na fábrica como funcionário assumia a ideia de liberdade condicionada,
pois possibilitava ao sujeito o convívio com pessoas externas ao ciclo familiar
e a participação em uma sociabilidade instaurada dentro dos grupos formados nas
seções de trabalho.
A relação estabelecida com as máquinas e o
valor simbólico conferido a elas, como elementos de identidade, é um dos eixos
sobre os quais se articularam as narrativas. A prática cotidiana do trabalho,
associada à curiosidade e à observação, conferia um conhecimento que era
manejado e utilizado como forma de distinção dentro da fábrica. Entender o
funcionamento da máquina era fundamental para solucionar problemas cotidianos e
demonstrar autonomia frente aos conhecimentos de técnicos especializados. É
essa aptidão para conhecer materiais e dominar as formas como as máquinas
operavam que, na memória, atuava como o diferencial entre o operário do passado
e aquele do presente. É possível afirmar que há um consenso memorial sobre esse
período anterior, no qual as representações sobre a fábrica giram em torno da
“grande família”, dos chefes como rigorosos e justos, dos conflitos como
apaziguados ou inexistentes e de acordos possíveis numa ordem que vai perdendo
a rigidez frente à necessidade de aumento da produção. A fábrica torna-se o
centro de uma vida desejável, e dessa narrativa constrói-se o mito da Idade de
Ouro, uma remodelação do passado cuja finalidade é possibilitar a continuidade
da existência no presente. No plano discursivo vê-se que o momento que se
aproxima da ruptura (o fechamento da empresa) é abordado de maneira
fragmentada, instável e controversa. Tudo parece se desordenar quando entra no
período que antecedeu ao fechamento, período no qual a desestabilização, a
insegurança e o sofrimento impõem-se como sentimentos e representações
possíveis.
Inúmeros personagens marcaram a empresa! Um
deles era o seu Hilso (era morador do Povo Novo e deu a entrevista em 1998), autodefinido
como “o guarda da Rheingantz”. Era ele quem cotidianamente abria o prédio às
7h30min, fechava às 11h30min, reabria às 13h30min e tornava a fechar às
17h30min. Abrindo e fechando uma fábrica vazia, já completamente deteriorada
pelo tempo, percorrendo pavilhões silenciosos que em nada lembravam os ruídos dos
teares e filatórios, esse homem mantinha ainda um vínculo com a administração da
fábrica, localizada na cidade de Pelotas, em função do qual recebia uma pequena
remuneração. Seu Hilso, definia seu papel como o de um guardião, o
representante do tempo da fábrica, o tempo da memória, que para ele era
o da negação do presente.
Espaço entre dois mundos, o do trabalho e o
do patrimônio, esse conjunto fabril possibilita que se interrogue sobre as
mutações sofridas pelo espaço urbano e as transformações que ocorreram na
cidade, que se abre, simbolicamente, pelo signo visual da indústria têxtil. O
desaparecimento de um mundo do trabalho idealizado e representado através de
categorias, como família, dignidade e juventude, deixou sentimentos de
indignação e revolta, substituídos no presente por decepção e silêncio.
Falar desse período terminal da fábrica foi
motivo de evitação e tristeza, uma memória impedida, indisponível e, pela força
da melancolia, difícil de esquecer.
Boa tarde.
ResponderExcluirA família Rheigantz era de origem alemã ou inglesa?
Grato.