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Cartão-postal do monumento a Bento Gonçalves. Acervo: Luiz Henrique Torres. |
Júlia Lopes de Almeida esteve em Rio Grande em junho de 1918. Entre os relatos que deixou registrado em livro, está essa bela passagem das impressões que ficou ao observar o monumento de Bento Gonçalves da Silva.
A espontaneidade e intensidade que sentiu ao observar a obra de arte, é dos melhores registros da escultura em bronze realizada pelo português Teixeira Lopes e que está instalada no Praça Tamandaré.
"Atravessávamos o bonito jardim da Praça Tamandaré, quando
parei, de súbito, vendo diante de mim a estátua de Bento Gonçalves, toda
destacada no fundo violáceo da manhã fria. O coração bateu-me no peito. Há muito que eu não sentia uma emoção de arte, e creio que escandalizei com as
minhas incontidas exclamações de entusiasmo os poucos pássaros que por ali se
entretinham a debicar nos gramados tostados pela geada. Já em Porto Alegre
Filipe de Oliveira me tinha falado com emoção desta escultura do grande mestre
que é Teixeira Lopes. Conhecendo a sua obra, e admirando nela tudo quanto de
mais prodigioso, sugestivo e belo podem realizar o talento, o sentimento e a
técnica de um artista tão excepcional como ele é, foi ainda assim no abalo de
uma maravilhosa surpresa, como se a cousa fosse inesperada, que eu contemplei
esse monumento, digno de uma bela, de uma grande capital de arte. Em pé, no
alto de um pedestal de linhas harmoniosas, o guerreiro Bento Gonçalves, fardado
de general, aperta com o braço esquerdo, freneticamente de encontro ao peito a
bandeira que toda lhe escorre pelo flanco, enquanto com o outro braço
estendido, segura na destra a espada nua, que se desenha no ar em linha
oblíqua. Ergue-se-lhe a cabeça num gesto altivo, sente-se-lhe a voz imperativa
na boca aberta e fremente; todo ele é força viva, todo ele é vibração, todo ele
significa: coração para amar, braço para defender, voz para aclamar a Pátria! A
seus pés, a meio pedestal, lutam dois formosíssimos leões, símbolos da
Monarquia e da República. Esta está subjugada, mas não morta. Sente-se-lhe na
dureza do bronze o latejar da carne, a nervosidade da cauda, o desespero das
garras crispadas e que fazem prever que de um instante para o outro, o papel
dos lutadores possa ser invertido; o outro leão, em atitude altiva de rancor e
de orgulho, pousa as patas dianteiras sobre o ventre do inimigo, e olha para
diante com expressão de domínio e de ódio. O escultor profético não dilacerou a
fera vencida; ela está por terra mas toda ela é vida que se contrai, que sofre,
mas que espera. E o que ela conseguiu, todos nós o sabemos. Bastaria esta hora
de contemplação, que passou tão rápida mas que se cristalizou para sempre na
minha memória, para me dar por feliz nesta viagem. São raros, mesmo nas capitais
mais artísticas do mundo, monumentos de praça pública que saibam aliar, como
este alia, a harmonia á majestade e a expressão do sentimento á perfeição
técnica da obra. Abençoado quem se lembrou de confiar ao artista, que é hoje
não uma glória de Portugal mas uma glória da Europa, o que equivale a dizer do
mundo, a execução de tamanha homenagem. Pegam-se-me os pés ao chão; é pela
urgência das circunstâncias que, fazendo violência sobre mim mesma, abandono o
meu posto de admiração feliz. E até entrar no carro, ao atravessar a praça
Tamandaré, volto a cabeça para ver, enquanto posso, a estátua admirável" (Júlia Lopes de Almeida. Jornadas no meu país. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1920).