Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - SAINT-HILAIRE III


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 
 
Pintura de Saint-Hilaire por Henrique Manzo. Museu Paulista da USP.
Saint-Hilaire
            Saint-Hilaire[1] aponta a insensibilidade que ele captara na Capitania, destacando “o hábito de castigar os escravos que lhes entorpece a sensibilidade”. Outra modalidade cruel estava relacionada à facilidade dos habitantes em renovar seus cavalos o que impedia de se afeiçoarem a eles, podendo impunemente tratá-los sem piedade alguma, vivendo “por assim dizer, em matadouros”. É um comentário que o naturalista generaliza para a Capitania. No caso específico da população da cidade “não é, pois, de estranhar se eles forem ainda, mais insensíveis que o resto de seus compatriotas” pois “fala-se aqui das desgraças alheias com o mais inalterável sangue-frio”. E exemplifica: “conta-se que um navio naufragou e a tripulação pereceu afogada, como se relatassem fatos os mais desinteressantes”.
            No dia 18 de agosto, ele registrou que foi passear na “aldeia aldeia Norte, situada, na extremidade da península que separa a Lagoa dos Patos do mar”. A travessia entre Rio Grande e São José do Norte era feita por embarcações chamadas de catraias, movidas tanto a remo como a vela. Ele esclarece que os habitantes da região distinguem esses dois lugares simplesmente pelos nomes de Sul e Norte; mas a aldeia do Norte se chama, propriamente, São José do Norte e faz parte da paróquia que tem o nome de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Estreito do Norte do Rio Grande de São Pedro.
            As embarcações aportam na aldeia do Norte e as mercadorias são transportadas para a alfândega de São Pedro. Como o centro do comércio do sul da Capitania se acha, de há muito, localizado em São Pedro, pois os “negociantes mais ricos da região tem aí suas residências e seus armazéns” não seria conveniente privar Rio Grande dos privilégios usufruídos com a localização da alfândega embora esta localização seja contrária  “a ordem natural das coisas”.
            A barra do Rio Grande é visitada por Saint-Hilaire na companhia do Conde, embarcados numa galera pertencente ao Rei. O canal de navegação é indicado por balizas “que tem o inconveniente de serem muito frágeis e que podem facilmente ser arrastadas pela correnteza”. Relata que na ponta sul da Barra o terreno é completamente arenoso existindo uma casa bastante grande na qual se estabeleceu uma guarda de ordenanças, encarregada de visitar as embarcações que saem com o objetivo de impedir a fuga de algum desertor. Peças de artilharia sem reparo destinada a defender a entrada da barra estão junto desta casa, estando também presentes na ponta norte. “Junto às baterias há uma casa coberta de telhas, destinada a alojar um destacamento de soldados”, avistando-se uma “torre quadrada que serve de sinalização aos navegadores”. Segundo ele “nada se iguala à tristeza desses lugares. De um lado, o bramir do oceano; e do outro, o rio”. O terreno é extremamente plano e quase ao nível do mar, é todo areal esbranquiçado, onde crescem plantas esparsas, especialmente o senecio. “As choupanas, mal conservadas, só anunciam miséria: destroços de embarcações semi-enterradas na areia recordam pungentes desgraças e nossa alma se enche, pouco a pouco, de melancolia e terror”. 
           Os naufrágios eram fator de apreensão no acesso à barra. Além da torre de sinalização, o papel do prático era indispensável para a entrada e saída das embarcações. “O prático da barra, num pequeno barco denominado catraia, vai mostrando, por meio de uma bandeira, que ele inclina de um lado ou de outro, o caminho a seguir”.
           O naturalista associa o crescimento do Rio Grande com a luta na Cisplatina, “só depois da insurreição das Colônias Espanholas, foi que esta cidade começou a florescer e que se construiu a maioria das casas importantes”. Até então, como a barra é muito perigosa e a carne seca dos arredores é de qualidade inferior a de Buenos Aires e de Montevidéu era nesses portos “que se ia buscá-la antigamente”. O desenvolvimento econômico estaria associado aos conflitos no Prata, pois depois da guerra, Rio Grande tornou-se centro desse comércio e um importante porto para o Brasil.
           No dia 30 de agosto, o diário do naturalista francês, traz descrições do plano urbano da cidade que era composto por seis ruas muito desiguais, atravessadas por outras excessivamente estreitas, denominadas becos. A rua mais comprida chamava-se Rua da Praia localizando-se à margem do canal; nessa rua estavam situadas quase todas as lojas e a maioria das vendas, umas e outras igualmente sortidas. Várias casas com janelas envidraçadas, cobertas de telhas e com sacadas de ferro, estão situadas na Rua da Praia, enquanto no resto da cidade não se contam pouco mais de seis a oito casas assobradadas. As quatro últimas ruas são constituídas “quase unicamente de miseráveis casebres de teto bastante alto, porém mal conservados, pequenos, construídos de pau-a-pique e onde moram pessoas pobres, operários e pescadores”. Portanto, 2/3 da faixa urbana estaria ocupada pela categoria habitacional pau-a-pique e não pela categoria dos assobradados. Porém, há um elemento unificador à vivência cotidiana: “nas duas ruas principais vêem-se lajes na frente das casas, entretanto nenhuma delas é calçada; enterram-se aí os pés na areia, o que dificulta o caminhar”. Somente a partir da década de 1860 é que teria início os calçamentos na cidade.
           O excesso de areia e a falta de árvores impressionam o botânico que ao ficar observando de uma área não construída de aproximadamente seiscentos passos (atual praça Xavier Ferreira) em direção a Lagoa, não conseguiu encontrar maiores atrativos: “Dessa praça avistam-se, além, das águas as ilhas dos Cavalos e dos Marinheiros; e ao nordeste percebe-se o Norte distante, bem como as embarcações ancoradas defronte à aldeia”. Essa visão de espaço vazio obtido por Saint-Hilaire, hoje apresenta outra espacialidade com a presença da Biblioteca Rio-Grandense, entreposto pesqueiro, mercado público, alfândega e demais prédios. O naturalista considerava a paisagem pouco agradável, não oferecendo nenhum ponto onde os olhos possam deter-se prazerosamente. “As ilhas são, como disse, muito chatas e tudo na paisagem parece nivelado (...) Nada mais triste que a posição do Rio Grande, pois, de todos os lados, só se avistam areais, pântanos e água, em todos os arredores não há nada que possa recrear a vista, nem mesmo uma árvore”.
           O futuro do Rio Grande é pintado com cores pessimistas. A instalação da alfândega no sul e não no norte foi uma “proteção oficial, inteiramente contrária a ordem natural das coisas”. Sem essa proteção a cidade “entrará em decadência”. Conforme o naturalista, outro fator do crescimento teria ocorrido ha oito anos, após a insurreição das colônias espanholas, pois antes dessa época, só existiam choupanas. O comércio de couro e de carne seca trouxera o enriquecimento em detrimento da decadência de Montevidéu. “A Capitania do Rio Grande do Sul tornou-se, pois, riquíssima em gado, à custa da pilhagem, ao mesmo tempo que desfrutava, pelo menos no interior, uma paz favorável ao seu comércio e do qual os mesmos vizinhos estavam privados”.
            A capitalização estaria associada à decadência da economia charqueadora de Montevidéu e a localização da alfândega. A natureza era o fator de comprometimento para o futuro do Rio Grande: vento, areia e melancolia da paisagem. No dia 5 de setembro de 1820, após uma  estadia de aproximadamente um mês na cidade, Saint-Hilaire partiu pela Lagoa dos Patos em direção a Pelotas, deixando em seu diário, os lamentos pelo pequeno número de casas com jardins; os poucos pessegueiros, figueiras e laranjeiras observados; os escassos legumes que negros acocorados vendiam no mercadinho, como couves, cebolas e alfaces. Aos olhos do botânico, que  passaria o resto de  sua vida na França, escrevendo suas vivências e classificando o material recolhido, o que mais marcou sua passagem por Rio Grande foi a paisagem monótona da interminável areia onde seus pés afundavam ao caminhar.


[1] SAINT-HILAIRE. Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre, ERUS/Martins Livreiro, 1987. 

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