Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - SAINT-HILAIRE II


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 
  
Edição francesa de 1887. 
Saint-Hilaire
            O naturalista Auguste de Saint-Hilaire[1] fez alguns comentários sobre o regime de ventos na cidade. Segundo informações em conversas com o padre e outras pessoas ocorria ventania durante todo o ano. Os ventos de oeste e sudoeste são os mais freqüentes no inverno e “levantam redemoinhos de uma areia fina que penetra nos móveis mais bem fechados, enche ruas e já encobriu grande número de casas”. Durante o verão, predomina o vento nordeste "que varre pequena parte das areias amontoadas pelos ventos do inverno". No dia 9 de agosto, o naturalista foi passear na parte leste da cidade, entre esta povoação, a lagoa, o Rio Grande, e a Lagoa da Mangueira.  Segundo ele, “os terrenos são muito baixos, pantanosos, um pouco banhados pelas águas salgadas, constituídos de areia e de uma terra muito preta”. Observou que não havia manancial nem fontes nos arredores da cidade, porém “a alguns palmos do solo acha-se água muito boa, da qual se utilizam os habitantes da região”. Ao abrirem um poço ou cacimba, há um grande cuidado em protegê-lo para impedir a entrada da areia. “Para tirar água, os negros usam um chifre de boi preso pelo meio a uma vara comprida”.
            O Saco da Mangueira é descrito como uma enseada que se encontra a meio quarto de légua a sudoeste da cidade. Recentemente “construíram, através do banhado, uma larga estrada que vai da cidade à Mangueira”. Seria necessário arborizar esta estrada pois nos arredores não há sombra, estendendo-se, a leste e sudeste, banhados lamacentos. Na cidade, o maior problema é a areia associada ao vento, pois a oeste e a sudoeste, “um areal de finura extrema que fatiga a vista pela sua cor esbranquiçada, forma montículos que avançam até as casas situadas atrás da cidade, elevando-se tanto que ameaçam aterrá-las a cada instante”. Saint-Hilaire observou “negros ocupados em desentulhar os arredores das casas de seus donos, que me informaram serem obrigados a repetir, sem descanso, esse trabalho”.
            Em relação ao porto, o naturalista é pessimista, pois em frente à cidade não haveria profundidade bastante para outras embarcações além de pequenos iates. Os navios maiores “ancoram diante da Aldeia do Norte, que pode ser considerada como porto de São Pedro”. Rio Grande “situada em terreno estéril, no meio de pântanos e areais, ameaçada constantemente de ser aterrada pelas areias” seria provável “que esta cidade fosse em breve abandonada, se não tivessem colocado a alfândega e não fossem obrigados a transportar para aí todas as mercadorias que chega ao Norte”.
            No dia 12 de agosto “soprou um vento violentíssimo, nuvens de areia extremamente fina enchiam o ar; saí por alguns instantes, sendo muito importunado pela areia que me entrava nos olhos e me cobria as vestes”. A tempestade de areia fez com que todas as lojas e vendas fechassem. No dia seguinte, foi oferecido um baile aos visitantes, que chegaram ao local marcado às dezenove horas, “onde encontramos cerca de sessenta senhoras reunidas em um salão forrado de papel francês”. As senhoras estavam “todas muito bem trajadas; usavam vestidos de seda branca, sapatos e meias de seda; jovens e velhas, traziam à cabeça descoberta, os cabelos armados por uma travessa e enfeitados com flores artificiais”. As mulheres estavam “sentadas ao redor do salão, em cadeiras colocadas uma diante das outras” enquanto os homens “em muito menor número, conservavam-se de pé”. Observando as vestimentas masculinas, o naturalista destacou alguns detalhes. Os oficiais apresentam-se rigorosamente fardados; os civis trajavam “fraque, camisa com jabô de renda, colete branco, geralmente de seda, meias de seda brancas, sapatos com fivela, finalmente calça branca de seda ou de casemira”.
            O baile foi considerado monótono pelo francês que assim o descreveu:
Os oficiais traziam a cintura esses espadins, de um pé a um pé e meio de comprimento, usados pelos portugueses e pelos oficiais da marinha inglesa, tendo a mão um chapéu de três bicos. Vários padres, entre eles o cura da paróquia assistiram o baile, e um deles fazia parte da orquestra; todos estavam de batina. O baile começou poucos instantes após a chegada do conde, mas nunca vi coisa tão monótona. Era preciso, por assim dizer, obrigar os homens a tirar as senhoras para dançar e, a exceção do conde, nenhum cavalheiro lhes dirigia a palavra. Dançaram 'inglesas' e valsas (...) Uma jovem dançou um solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude deixar de lamentar que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos. Não tendo com quem conversar e achando-me francamente aborrecido, resolvi retirar-me logo que começou a ceia.
            No dia 16 de agosto, a realização de outro baile permitiu destacar elementos sobre a vida social da elite local. O Conde de Figueiras foi convidado para um baile em casa de um dos mais ricos comerciantes da cidade. Nessa casa “encontramos grande número de senhoras bem trajadas, reunidas num belo salão; na maior parte, as mesmas que haviam comparecido ao baile anterior”. E observou: “possuem olhos e cabelos negros, bela tez e boa cor mas, em geral, sem graça, sem atrativos, dados pela educação social que as mulheres desta região não recebem”. Os motivos para a falta de atrativo intelectual, está relacionado à ausência de escolas e pensionatos para as moças que eram “criadas no meio dos escravos” e desde a “mais tenra idade, tem elas diante de si o exemplo de todos os vícios, adquirindo, via de regra, o hábito do orgulho e da baixeza”. A maioria delas “não sabem ler nem escrever: aprendem algumas costuras, a recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo”. As brasileiras, em geral, “ignoram os encantos da sociedade e prazeres da boa conversação” porém, “nesta região as mulheres se ocultam menos do que as das Capitanias do interior”. Nesse sentido, possuem “melhores noções de vida; são desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita distância das mulheres européias”. 
           Mas se as mulheres deixam a desejar em relação à educação européia, os homens também estão distantes daquele universo “Entre os homens do Rio Grande, todos negociantes, talvez a mesma indiferença e os mesmos modos desdenhosos dos habitantes do Rio de Janeiro”. Esses homens são, em parte, “europeus, nascidos em um meio inferior e que não receberam educação alguma”, iniciando suas atividades como caixeiros de lojas e acabam fazendo negócios por conta própria. Os lucros do comércio eram consideráveis e estes negociantes não “tardam a fazer fortuna que jamais conseguiriam em sua pátria”, chegando ao “cúmulo de comprar à Secretaria do Estado, a Comenda da Ordem de Cristo, hoje, considerada como símbolo da riqueza e fruto da corrupção”. O naturalista observa que fora do Rio de Janeiro ele não vira um número tão grande de homens condecorados, “isso nada mais é do que uma das provas da riqueza do lugar”.


[1] SAINT-HILAIRE. Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre, ERUS/Martins Livreiro, 1987.

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