O navio HMS
Beagle, no ano de 1832, navegou do Rio
de Janeiro até Maldonado (Uruguai). Lamentavelmente, não atracou no Porto Velho
do Rio Grande. Imaginemos os registros que poderiam ter sido documentados pelo seu
mais famoso passageiro o naturalista Charles Darwin em seu diário: fauna, flora
e sobre a vida cotidiana na então Vila do Rio Grande de São Pedro. Neste
período pré-Revolução Farroupilha o cenário político já estava agitado e
poderia render algumas observações inteligentes deste magistral observador.
De um lado Darwin apreciou a natureza que ele
descreveu entusiasticamente durante sua viagem ao Brasil; em outra perspectiva
ele proferiu palavras ácidas em relação à escravidão e a corrupção que ele
vivenciou no Brasil, especialmente durante sua permanência no Rio de
Janeiro.
A primeira publicação dos diários desta expedição inglesa de
levantamento topográfico e de História Natural foi publicada na Inglaterra em
maio de 1839 como “Narrativa da Viagem de Levantamento dos
Navios de nossa Majestade Adventure e Beagle” em
quatro volumes. O “Diário e Anotações de Darwin 1832-1836” forma
o terceiro volume e se tornou uma obra que popularizou o jovem cientista que
tinha apenas 22 anos no início da viagem.
Os relatos
deixados em relação à sociabilidade encontrada no Brasil não são positivos para
um país que estava a dez anos independente de Portugal. Obviamente, o país apenas
começava a sua construção pós-colonial, mas o que mais “incomoda” é que já
passaram quase dois séculos e inúmeras mazelas continuam vivas: má prestação de
serviços, infra-estrutura medíocre, corrupção, jeitinhos, favorecimentos etc.
Deixemos o
próprio Darwin relatar alguns momentos deste convívio de mais de seis meses no
Brasil, sempre levando em consideração que são impressões subjetivas que não podem
ser generalizadas a tudo que sem chamava Brasil naquela época:
“3 de
julho de 1832. Fomos à cidade. Ao desembarcar, encontrei a Praça do Palácio
repleta de gente em volta da casa de dois cambistas que haviam sido
assassinados na noite de ontem de forma mais atroz que o normal. É bastante
temeroso ouvir os crimes enormes cometidos diariamente e não punidos. Um
escravo que assassinar seu senhor se tornará um escravo do governo após ser
confinado por algum tempo. Já um homem rico pode estar certo de que estará
livre dentro de pouco tempo, por maior que seja a acusação contra si. Todos
aqui podem ser subornados. Um homem pode se tornar marinheiro ou médico ou
qualquer outra profissão se puder pagar o bastante. Alguns brasileiros já
declararam com seriedade que o único defeito que enxergam nas leis inglesas foi
não identificar qualquer vantagem dos ricos e respeitáveis sobre os pobres e
miseráveis. Os brasileiros, até onde posso julgar, possuem apenas uma pequena
fração daquelas qualidades que conferem dignidade à humanidade. Ignorantes, covardes
e indolentes ao extremo. Hospitaleiros e bem intencionados até onde isso não
lhes causa qualquer problema. Moderados, vingativos, mas não briguentos.
Contentes consigo e com seus costumes, eles respondem a qualquer comentário
perguntando: ‘Por que não podemos fazer como nossos avós faziam?’. Sua própria
aparência pressagia sua pequena elevação de caráter. De vulto pequeno, eles
logo se tornam corpulentos. Devido a sua pouca expressão, parecem ter a cara
afundada entre os ombros. Os monges são ainda piores nesse último aspecto. Não
é preciso muita fisionomia para ver plenamente estampados em seu rosto a
dissimulação perseverante, a sensualidade e o orgulho. Há um velho que sempre
paro para olhar, igual apenas a Judas Iscariotes em tudo que já vi”.
Alimentar-se bem era uma experiência difícil. As hospedarias e os donos
de pousadas são pouco amáveis, quase sempre bruscos e suas próprias casas e a
de seus parentes com freqüência estão descuidados e sujos. As hospedarias não
têm facas, garfos ou colheres, o que o convence de que seria difícil encontrar
na Inglaterra, um abrigo, por mais pobre que fosse, tão desprovido das coisas
elementares. Darwin escreveu que era satisfatório que ao final de uma espera de
mais de duas horas, fosse possível comer carne de galinha, arroz e farinha,
sendo em alguns casos, preciso ajudar a matar as galinhas a pedradas, antes da
refeição. Se questionar da demora a resposta era: “A comida estará pronta
quando estiver”. Como exceção foram “tratados magnificamente” numa certa
localidade. Porém, o custo final foi à apropriação indébita de uma bolsa.
Questionando o proprietário sobre o sumiço da bolsa a resposta foi: “Como
querem que eu saiba disso? Talvez tenha sido comida pelos cachorros”.
Outras observações interessantes são sobre infra-estrutura e a
violência. Ele viaja para uma aldeia onde passa uma das principais estradas do
Brasil que está em péssimas condições e mal dá passagem a carros de boi! Darwin
também observa inúmeras cruzes à beira da estrada, que, em vez de marcos de
distância, assinalam pontos de mortes por assassinato.
As práticas cotidianas vivenciadas por Darwin infelizmente não são
estranhas no presente. As raízes de que “algo está podre no Reino Tupiniquim” é
de longa duração. Especialmente, num dos trechos mais paradigmáticos da
narrativa: ‘Por que não podemos fazer como nossos avós
faziam?’ Esta afirmação recuaria estas práticas do “vale tudo patrimonialista” há
meados do século XVIII! O olhar científico iluminista de Darwin se chocou com
um ambiente pesado de favorecimentos e de truculência inerente às relações
escravistas. O naturalista afirma que jamais iria esquecer a vergonha que
sentiu com a expressão facial de um escravo. Darwin procurou com gestos de
mímica se comunicar e fez um
movimento mais brusco próximo ao rosto do escravo: este protegeu o rosto com
olhar temeroso como se fosse ser agredido. A brutalidade permeava os pequenos e
os grandes gestos...
Apesar
de frisar que não gostaria de mais visitar o Brasil, Darwin levou uma bagagem
repleta de experiências fundadas na diversidade natural do país: a coleta de
espécimes animais e vegetais, as observações das montanhas, florestas, mangues,
rios e do litoral o levaram a afirmar que “é impossível sonhar com algo mais delicioso que
essa estada de algumas semanas num país tão impressionante”, pois para os
interessados em História Natural “nesses climas tão férteis, repletos de seres
animados, para fazer uma caracterização, descobertas novas são feitas a cada
instante”.
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