Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

JÚLIA LOPES DE ALMEIDA E BENTO GONÇALVES

 

Cartão-postal do monumento a Bento Gonçalves. Acervo: Luiz Henrique Torres. 

Júlia Lopes de Almeida esteve em Rio Grande em junho de 1918. Entre os relatos que deixou registrado em livro, está essa bela passagem das impressões que ficou ao observar o monumento de Bento Gonçalves da Silva. 

A espontaneidade e intensidade que sentiu ao observar a obra de arte, é dos melhores registros da escultura em bronze realizada pelo português Teixeira Lopes e que está instalada no Praça Tamandaré. 


"Atravessávamos o bonito jardim da Praça Tamandaré, quando parei, de súbito, vendo diante de mim a estátua de Bento Gonçalves, toda destacada no fundo violáceo da manhã fria. O coração bateu-me no peito. Há muito que eu não sentia uma emoção de arte, e creio que escandalizei com as minhas incontidas exclamações de entusiasmo os poucos pássaros que por ali se entretinham a debicar nos gramados tostados pela geada. Já em Porto Alegre Filipe de Oliveira me tinha falado com emoção desta escultura do grande mestre que é Teixeira Lopes. Conhecendo a sua obra, e admirando nela tudo quanto de mais prodigioso, sugestivo e belo podem realizar o talento, o sentimento e a técnica de um artista tão excepcional como ele é, foi ainda assim no abalo de uma maravilhosa surpresa, como se a cousa fosse inesperada, que eu contemplei esse monumento, digno de uma bela, de uma grande capital de arte. Em pé, no alto de um pedestal de linhas harmoniosas, o guerreiro Bento Gonçalves, fardado de general, aperta com o braço esquerdo, freneticamente de encontro ao peito a bandeira que toda lhe escorre pelo flanco, enquanto com o outro braço estendido, segura na destra a espada nua, que se desenha no ar em linha oblíqua. Ergue-se-lhe a cabeça num gesto altivo, sente-se-lhe a voz imperativa na boca aberta e fremente; todo ele é força viva, todo ele é vibração, todo ele significa: coração para amar, braço para defender, voz para aclamar a Pátria! A seus pés, a meio pedestal, lutam dois formosíssimos leões, símbolos da Monarquia e da República. Esta está subjugada, mas não morta. Sente-se-lhe na dureza do bronze o latejar da carne, a nervosidade da cauda, o desespero das garras crispadas e que fazem prever que de um instante para o outro, o papel dos lutadores possa ser invertido; o outro leão, em atitude altiva de rancor e de orgulho, pousa as patas dianteiras sobre o ventre do inimigo, e olha para diante com expressão de domínio e de ódio. O escultor profético não dilacerou a fera vencida; ela está por terra mas toda ela é vida que se contrai, que sofre, mas que espera. E o que ela conseguiu, todos nós o sabemos. Bastaria esta hora de contemplação, que passou tão rápida mas que se cristalizou para sempre na minha memória, para me dar por feliz nesta viagem. São raros, mesmo nas capitais mais artísticas do mundo, monumentos de praça pública que saibam aliar, como este alia, a harmonia á majestade e a expressão do sentimento á perfeição técnica da obra. Abençoado quem se lembrou de confiar ao artista, que é hoje não uma glória de Portugal mas uma glória da Europa, o que equivale a dizer do mundo, a execução de tamanha homenagem. Pegam-se-me os pés ao chão; é pela urgência das circunstâncias que, fazendo violência sobre mim mesma, abandono o meu posto de admiração feliz. E até entrar no carro, ao atravessar a praça Tamandaré, volto a cabeça para ver, enquanto posso, a estátua admirável" (Júlia Lopes de Almeida. Jornadas no meu país. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1920).  

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