Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

UM ITALIANO ANALISA A CIDADE


Fotografia do centro da cidade em 1870. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 
Rio Grande recebeu desde o final do século XVIII, devido a sua localização portuária com rotas nacionais e internacionais, o aporte de experiências multifacetadas oriunda de diversos países. O comércio interoceânico catalizou a vinda de cidadãos de várias nacionalidades que deixaram registros sobre a constituição urbana da localidade.
Entre os estrangeiros que por aqui passaram ou radicaram-se, está o italiano nascido em Milão, Henrique Schutel Ambauer (1840-1899) que atuou como professor de música e residiu por vários anos no Rio Grande do Sul. Publicou A Província do Rio Grande do Sul: descrição e viagens (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. 51, 2ª parte. Rio de Janeiro: IHGB, 1888), voltado a observações, especialmente, da zona costeira do Rio Grande do Sul.
A parte sul da zona costeira era conhecida do autor, que teve por longos anos uma casa de música na cidade do Rio Grande. Em relação à parte norte, utilizou escritos anteriores, dos quais inclusive transcreveu longos trechos. O pesquisador Abeillard Barreto constatou que quando de sua presença na cidade do Rio Grande, chegou a organizar um projeto de colonização do município, o qual foi publicado no ano de 1883.
         Conforme o historiador Francisco das Neves Alves que realizou um estudo sobre Ambauer no livro Visões do Rio Grande. Rio Grande: FURG, 2008, a primeira perspectiva traçada pelo autor sobre a cidade constituiu um brevíssimo histórico e uma descrição geográfica da localidade, com destaque para o acesso, a hidrografia, o relevo e o conjunto de ilhas no entorno da urbe. Os riscos da costa gaúcha estão presentes na narrativa do escritor que descrevia que, entre o 29º e o 33º austral e 49º e 53º ocidental estava uma costa baixa, árida, monótona e triste, a qual o cauteloso navegante evitava, se não se dirigia ao único Porto acessível da região. Sobre esta faixa litorânea, relatava que as correntezas, os ventos, os descuidos e as espertezas tinham dado a essa costa e ao seu Porto uma reputação pouco lisonjeira, num quadro em que, todas essas circunstâncias promoviam a demora do desenvolvimento da navegação de alto bordo para a Província, impedindo assim a ela tomar rapidamente o grau de adiantamento que poderia atingir.
A respeito do acesso à comunidade portuária, Ambauer destacava que o Rio Grande era o único que permitia a entrada de navios que não demandassem mais de 18 palmos, e isso nem sempre, sendo mais regular de 14 a 15. Explicava que, dificultavam a passagem pela da Barra dois bancos que lhe obstruíam a entrada, formando-se entre eles um canal mutável segundo a direção mais longa dos ventos e correntezas. Narrava ainda que a massa das águas que escoava pela Barra do Rio Grande seria mais que suficiente para ter um canal de franca navegação, se ela não tivesse perdido o declive nos dois lagos internos e na bacia que os recebia, de maneira que o nivelamento, que formava esse espraiamento das águas fluviais, paralisava um tanto o seu curso e apenas o escoamento com diminuta força permitia a conservação desse pequeno Canal da Barra. Refletindo uma das maiores aspirações rio-grandinas, o escritor explicava que era de desejar que, para o futuro, se encontrasse meio de aumentar a profundidade do canal, para que a Província do Rio Grande pudesse conseguir a afluência de uma navegação mais desenvolvida, enriquecendo-se na grande permuta internacional. O serviço de praticagem, a sinalização náutica, as embarcações de apoio e os pontos de desembarque também se faziam presentes na narrativa do italiano.
Com referência à organização econômica e urbana, o autor destacava que, comercialmente a cidade do Rio Grande era considerada o interposto geral, sendo o ponto no qual convergem tanto o comércio exterior como o interior. Nesse quadro, relatava que a parte mais importante da cidade era o seu litoral, em linha quase reta, de leste a oeste, no qual duas linhas de embarcações corriam na mesma direção, deixando entre si um canal de poucas braças de largura, por onde transitavam as embarcações que demandavam o ancoradouro. Fazia referência ainda ao fato de que as casas que margeavam o litoral, como eram quase todas de sobrado de um e dois andares, algumas elegantes com graciosos mirantes, davam agradável aspecto ao panorama visto do mar, seguindo-se, porém, algumas ruas paralelas e outras transversais, que não valeriam à primeira, havendo apenas algumas praças e casas particulares de aparência regular. Descrevia também que a cidade possuía uma alfândega e um excelente cais para o serviço da mesma, tendo uma praça de comércio, onde funcionava igualmente o correio, casa da câmara, mercado, um enorme edifício – hospital de caridade – que, segundo sua concepção, poderia ser menor e ter mais acomodações. As praças, as chácaras, o incômodo com as areias e o abastecimento de água são outros temas abordados por Ambauer, para quem era fora de dúvida que a cidade do Rio Grande viria a ser uma das mais importantes das do Sul da América, quando um caminho de ferro a ligasse com a fronteira da Província.
Conforme a análise de Alves, o escritor fazia alusão a certa rivalidade existente entre os habitantes da cidade do Rio Grande e os de Pelotas, a qual, segundo ele, não tinha razão de ser, ligadas como estavam ambas pelos interesses mútuos, que, unindo o capital do comércio do Rio Grande ao produto especial da indústria especial de Pelotas, facilitava os meios de riqueza e o bem-estar dos moradores das duas cidades. De acordo com essa perspectiva o autor apontava para o caráter complementar daquelas que eram duas das principais comunidades sul-rio-grandenses de então, quer seja, a produção pecuário-charqueadora concentrada no contexto pelotense e o porto de escoamento dessa “indústria”, representado pelo Rio Grande.
Para Alves, as apreciações de Ambauer sobre a cidade do Rio Grande refletiam a perspectiva de um morador que permaneceu largo tempo junto à comuna, prestando um testemunho in loco que traz em si o significado do registro histórico da urbe portuária numa época de amplas transformações como o foi a virada do século XIX para a seguinte centúria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário