Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

MARINHEIROS E ESCRAVOS NO MUNDO ATLÂNTICO

Escravos negros no Porto do Rio Grande. Aquarela de Wendroth, 1852. 


          Ao longo dos tempos, o mundo Atlântico se manifestou em Rio Grande de diferentes maneiras. Seja com as atividades do controle militar da Barra do Rio Grande no século XVIII, da presença de comerciantes e industriais, da vinda de imigrantes de diferentes nacionalidades, das atividades pesqueiras, etc. Este mundo Atlântico que se apresenta social e culturalmente como uma interligação e não como uma fronteira, também propiciou a chegada de inúmeros escravos negros que em algum momento do passado fizeram parte do tráfico negreiro oriundo da África.
         Uma pesquisa (em nível de Mestrado em História) que tem contribuído para lançar um novo olhar sobre a escravidão em Rio Grande foi realizada por Vinicius Pereira de Oliveira buscando uma relação entre o escravo e o marinheiro. Para ele o mundo Atlântico é entendido enquanto um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais na qual às embarcações desempenhariam um papel mais complexo do que um simples meio de transporte. Além disso, com as fugas de escravos utilizando o meio marítimo, o Atlântico também pode ser interpretado como uma ‘possibilidade de resistência’. Um pouco do trabalho deste autor foi reproduzido a seguir com base no artigo “Escravos, marinheiros, embarcadiços e pescadores negros no mundo atlântico de Rio Grande/RS (século XIX)”, In: 4° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009.  
Conforme Vinicius Oliveira, no dia 19 de abril de 1846 os marinheiros José e Manoel chegaram ao porto da cidade de Recife a bordo do brigue Mentor. Ambos eram escravos e oriundos do Rio Grande do Sul. No dia seguinte desapareceram sob a bruma da noite e, cinco meses depois, ainda não haviam sido capturados. Segundo a imprensa da cidade, o sucesso da fuga devia-se ao fato do escravo José conhecer muito bem Pernambuco por ter vivido lá antes de ser vendido para a província sulina. Não sabemos mais detalhes sobre a vida destes indivíduos, porém elas faziam parte de um universo amplo de múltiplas e complexas vivências de escravos e negros livres que ao longo da história do Brasil dividiram suas existências entre o convés de navios, o balançar de canoas e a terra firme, desempenhando papel fundamental na marinha mercante e militar do país, quer fosse na pesca, no transporte de gêneros diversos ou na condução de passageiros.
         Entender o desenvolvimento do Brasil colonial e imperial exige a análise do papel fundamental desempenhado pelo transporte náutico, seja marítimo, lacustre ou fluvial, frente às deficiências do transporte terrestre. Toda uma rede de atividades comerciais e transporte de mercadorias, pessoas e idéias não pode ser entendida sem observar esta forma de deslocamento que articulava diferentes localidades do país entre si e com outras nações e continentes. A cidade do Rio Grande, único porto marítimo da província, configurou-se como uma das principais praças de comércio do Brasil ao longo do século XIX, desempenhando um papel de entreposto para um significativo comércio de importação e exportação, articulando a província com diversas localidades do Brasil e do mundo Atlântico, como Estados Unidos, Montevidéu, Buenos Aires, portos da Europa, e eventualmente localidades da África. Rio Grande igualmente articulava um universo amplo de localidades da província, através de redes de transporte hidroviário que incluía uma teia de rios e lagoas, aproximando-o de localidades como a charqueadora Pelotas, a fronteiriça e comercial Jaguarão e a capital Porto Alegre, as quais por sua vez estabeleciam conexões com outras redes hidroviárias (Rio dos Sinos, Rio Jacuí, Rio Taquari, Lagoa Mirim/Uruguai, etc).
Dessa forma, as dinâmicas da cidade do Rio Grande estavam significativamente vinculadas com o mundo Atlântico, aqui entendido como o conjunto de processos econômicos, sociais e culturais resultantes da interação e movimento entre diferentes localidades e culturas mediadas entre si pelo Atlântico e que incluíam a Europa, América do Norte, América Central, África, províncias do Brasil e região platina. Nesta cidade comercial e cosmopolita a escravidão era peça fundamental Neste universo escravista e intimamente relacionado com as águas, os negros desempenharam um papel fundamental em atividades diretamente ligadas ao ramo náutico.
Alguns números da presença dos escravos em Rio Grande: na década de 1860, 21% dos escravos que fugiram eram declarados marinheiros; na mesma década, 45% das fugas ocorreu por embarcações; a população de escravos em Rio Grande era expressiva, sendo no ano de 1814 de 31% do total e em 1842 de 42% do total.
As conexões estabelecidas através da navegação de longo curso e cabotagem, onde marinheiros de diferentes regiões do Brasil entravam em contato, propiciavam variadas situações de circulação cultural no contexto do mundo Atlântico. Escravos do interior da província, ao efetuarem uma viagem ao porto do Rio Grande como membros de tripulações, certamente entravam em contato com negros livres e escravos oriundos de embarcações do Rio de Janeiro ou Pernambuco, ou mesmo da África. Na documentação analisada são recorrentes as referências à presença de marinheiros – muitos deles negros – em espaços de convívio social como tabernas, trapiches, mercado público, fontes d’água e praças, ou mesmo andando e bebendo pela rua. Estas vivências faziam parte, para os embarcadiços, da busca de socialização e reterritorialização, já que os longos períodos embarcados, a constante mobilidade espacial e o afastamento das relações sociais anteriores eram características da vida dos “homens do mar”. As péssimas condições de vida a bordo e a severa disciplina – traços que contribuíam para afastar a sociedade branca e livre dessas atividades, tornando-a espaço onde a presença negra era significativa – transformavam os momentos de folga em terra especiais para a vivência de alguma margem de autonomia. Os períodos entre uma viagem e outra propiciavam o convívio e troca de experiências entre marítimos de diferentes origens e nacionalidades que ocorria, primeiramente, no próprio atracadouro. Estas experiências, porém, não se restringiam ao cais ou trapiches, mas se articulavam com outros espaços de convívio popular das cidades por onde passavam.
Em uma cidade negra como Rio Grande, estes espaços urbanos eram cotidianamente vivenciados não somente por marinheiros, mas também por escravos, negros livres, brancos pobres, quitandeiras, etc., por motivo de lazer ou trabalho, situação que colocava em contato uma diversidade de sujeitos portadores de idéias, sentimentos, expectativas, projetos e visões particulares de mundo, moldadas por uma diversidade de variáveis como cor de pele, condição jurídica, religião e trajetória pessoal.
Para Vinicius de Oliveira, é possível propor que as peculiaridades da escravidão em Rio Grande consistiam nos seguintes aspectos: a) significativa presença de marinheiros negros (livres e escravos); b) uma considerável taxa de africanidade entre escravos e negros livres; c) pertencimento ao mundo Atlântico enquanto uma cidade negra voltadas para as águas, situação propiciadora do estabelecimento de nexos com outras localidades da província, do Brasil e de outros continentes; aspecto que marcava a cultura e vivências populares da cidade.

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