Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A MULHER OPERÁRIA EM RIO GRANDE

Operárias na funilaria do Frigorífico Swift, 1920. Acervo: Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul. 


        A noção de que os papéis sociais são construídos historicamente é defendida por muitos historiadores. O gênero masculino e feminino também seria uma construção social que define papéis para homens e mulheres frente a produção e as sociabilidades. Os padrões normativos definidos por cada sociedade, estabelecem gestos e práticas próprias para cada gênero, variando com o período histórico e o contexto social. Este referencial teórico é defendido na monografia As Mulheres e o Movimento Operário na cidade do Rio Grande na República Velha (Especialização em História do Rio Grande do Sul, FURG, 2010) escrito por Sabrina Meirelles Macedo.
         Rio Grande foi uma cidade pioneira no surgimento da grande indústria no Rio Grande do Sul e teve desde os primórdios a participação feminina na indústria têxtil Rheingantz. As mulheres compunham uma grande parte da mão-de-obra fabril, chegando a constituir um terço da mão-de-obra industrial em 1920.
É preciso ressaltar que há 90 anos atrás, a mentalidade ligada a presença feminina na rua e no trabalho é muito diferente da atual com ampla presença das mulheres no mercado de trabalho. Durante a República Velha vigorou o ideário positivista. A imagem feminina construída no positivismo foi a da mulher ligada ao lar, ao privado, ao equilíbrio familiar. O bom funcionamento da sociedade fundava-se na premissa do lar equilibrado e administrado pela mulher que era o Anjo Tutelar ou a Rainha do Lar. Já o espaço da rua cabia aos homens. O discurso positivista é conservador e funda-se na pureza e santidade feminina que é uma referência de moralidade. Para a historiadora Clarisse Ismério este modelo foi herdado “através de uma cultura que preconizava a mulher dedicada ao marido, aos filhos e a casa. Foi fortemente influenciado pelo pensamento clássico, pelos ditames da Revolução Francesa e de Jean-Jacques Rosseau”. No contexto da mentalidade patriarcal a mulher é vista como inferior ao homem, física e mentalmente, sendo suscetível a perigos e danos, necessitando da constante vigília da tutela masculina do pai, dos irmãos, do padre, do marido e do Estado.
Para Rosseau na obra Emílio ou Da Educação, ao homem cabia os negócios, a política, a liderança da família e da sociedade enquanto para a mulher, constituída de uma natureza frágil, emotiva, delicada, estavam reservados os afazeres domésticos, as prendas do lar, sendo preparada desde criança para desempenhar o papel de mãe e esposa. No Brasil, a discussão da competência da mulher para participar da vida política através do voto se arrastou até 1934, em parte, pela forte mentalidade da inaptidão natural da mulher a certas atividades políticas, sociais e culturais.
No campo médico-higienista havia um discurso de saúde do corpo ligado a família saudável fundada no casamento. A historiadora Margareth Rago enfatizou que a “mulher deveria se restringir ao seu ‘espaço natural’, o lar, evitando toda sorte de contato e atividade que pudesse atraí-la para o mundo público. A medicina fundamentava essas concepções em bases científicas, mostrando que o crânio feminino, assim como toda sua constituição biológica, fixava o destino da mulher: ser mãe e viver no lar, abnegadamente, cuidando da família”.
O espaço da rua nas primeiras décadas da República, tinha um discurso nada favorável a presença feminina, com exceção da figura da educadora ou professora. Porém, a necessidade de sobrevivência numa sociedade industrial como em Rio Grande, possibilitará a lenta conquista de lugares frente à produção industrial, num processo desencadeado pelo próprio sistema capitalista que necessita de mão-de-obra. Para termos ideia da dimensão operária da cidade, no ano de 1900, Rio Grande tinha 29.000 habitantes e entre 8.000 e 10.000 operários.
Nas fábricas homens e mulheres exerciam atividades diferenciadas havendo o trabalho de homem e o trabalho de mulher. O trabalho feminino era usado nas tarefas que exigiam dedos dedicados e ágeis, paciência, lida com alimentos, fios e agulhas. Já os homens cabiam tarefas envolvendo músculos e trabalho pesado. As mulheres estavam mais presentes nas indústrias têxtil e alimentícia.  
A fábrica era vista como um lugar impróprio para o sexo feminino por ser insalubre e um ‘antro de perdição’, o que ameaçava a saúde e a moral das mulheres. Conforme Sabrina Meirelles Macedo, as operárias enfrentavam, como todos os operários, péssimas condições de trabalho: ambiente fabril insalubre, falta de garantias trabalhistas, carga horária exaustiva, baixos salários e ainda, assédio e violência sexual por parte dos patrões e supervisores. O trabalho feminino também motivou um conflito da sobrevivência entre homens e mulheres operários. A preferência dos patrões por empregar mão-de-obra feminina foi um dos motivos que levou a imprensa operária a assumir uma postura de denúncia da exploração que as mulheres sofriam nas fábricas por sua condição mais fragilizada. Além da visão do homem operário de que a mulher não deveria se submeter ao trabalho no espaço da rua, permeava este discurso o próprio conflito pelo mercado de trabalho. Por ser uma mão-de-obra mais barata, a mulher ameaçava a mão-de-obra masculina e por vezes, retirava do homem o papel de provedor da família, invertendo-se os papéis sexuais previamente estabelecidos, contrariando-se a moral social corrente na época. A expansão das fábricas têxteis e alimentícias, concentradoras da mão-de-obra feminina, proporcionaram à mulher uma maior notoriedade nos espaços públicos e nos locais de trabalho, lugares ditos de homens. Ou seja, a presença feminina nas fábricas era motivo de conflito até entre o operariado.
Um exemplo do difícil cotidiano do trabalho está expresso num processo criminal e numa “malandragem advocatícia” que expressava parte da mentalidade da época. É o caso da sra. Martha Maurano que trabalhava como cozinheira em uma padaria. Martha prestou queixa contra o noivo de sua filha, Hercília de 17 anos, operária da Rheingantz, por este ter deflorado sua filha enquanto ela estava trabalhando na padaria. O advogado de defesa argumentou que Hercília se “entregou espontaneamente, até com o consentimento de sua própria mãe, pois que não é crível que se tratando de uma moça, filha honesta e virgem, essa mãe se retirasse de casa para cozinhar em uma padaria, deixando só, abandonada às suas exclusivas forças, uma filha menor e virgem (Processo n.365, Rio Grande, 1918). Ou seja, ao ausentar-se da casa para “trabalhar” Martha abandonou suas obrigações de mãe expondo sua filha a violência, rompendo com o seu papel de ‘Anjo Tutelar’. Conforme Isabel Bilhão em caso de “crime de sedução, o comportamento das mães das vítimas era um dos aspectos analisados pelas autoridades jurídicas, e, dificilmente, se a vítima fosse (...) filha de uma mulher sozinha e que trabalhasse fora, receberia ganho de causa em um processo judicial”.
A difícil vida da mulher operária não se resumia ao ambiente de trabalho e aos baixos salários: era preciso romper as barreiras da mentalidade de que o trabalho era avesso à condição feminina.

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