Operárias na funilaria do Frigorífico Swift, 1920. Acervo: Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul. |
A noção de que os papéis sociais são construídos historicamente é defendida por muitos historiadores. O gênero masculino e feminino também seria uma construção social que define papéis para homens e mulheres frente a produção e as sociabilidades. Os padrões normativos definidos por cada sociedade, estabelecem gestos e práticas próprias para cada gênero, variando com o período histórico e o contexto social. Este referencial teórico é defendido na monografia As Mulheres e o Movimento Operário na cidade do Rio Grande na República Velha (Especialização em História do Rio Grande do Sul, FURG, 2010) escrito por Sabrina Meirelles Macedo.
Rio
Grande foi uma cidade pioneira no surgimento da grande indústria no Rio Grande
do Sul e teve desde os primórdios a participação feminina na indústria têxtil
Rheingantz. As mulheres compunham uma grande parte da mão-de-obra fabril,
chegando a constituir um terço da mão-de-obra industrial em 1920.
É preciso ressaltar
que há 90 anos atrás, a mentalidade ligada a presença feminina na rua e no
trabalho é muito diferente da atual com ampla presença das mulheres no mercado
de trabalho. Durante a República Velha vigorou o ideário positivista. A imagem
feminina construída no positivismo foi a da mulher ligada ao lar, ao privado,
ao equilíbrio familiar. O bom funcionamento da sociedade fundava-se na premissa
do lar equilibrado e administrado pela mulher que era o Anjo Tutelar ou a Rainha do Lar.
Já o espaço da rua cabia aos homens. O discurso positivista é conservador e
funda-se na pureza e santidade feminina que é uma referência de moralidade.
Para a historiadora Clarisse Ismério este modelo foi herdado “através de uma
cultura que preconizava a mulher dedicada ao marido, aos filhos e a casa. Foi
fortemente influenciado pelo pensamento clássico, pelos ditames da Revolução
Francesa e de Jean-Jacques Rosseau”. No contexto da mentalidade patriarcal a
mulher é vista como inferior ao homem, física e mentalmente, sendo suscetível a
perigos e danos, necessitando da constante vigília da tutela masculina do pai,
dos irmãos, do padre, do marido e do Estado.
Para Rosseau na obra Emílio ou Da Educação, ao homem cabia os
negócios, a política, a liderança da família e da sociedade enquanto para a
mulher, constituída de uma natureza frágil, emotiva, delicada, estavam
reservados os afazeres domésticos, as prendas do lar, sendo preparada desde
criança para desempenhar o papel de mãe e esposa. No Brasil, a discussão da competência
da mulher para participar da vida política através do voto se arrastou até
1934, em parte, pela forte mentalidade da inaptidão natural da mulher a certas
atividades políticas, sociais e culturais.
No campo
médico-higienista havia um discurso de saúde do corpo ligado a família saudável
fundada no casamento. A historiadora Margareth Rago enfatizou que a “mulher
deveria se restringir ao seu ‘espaço natural’, o lar, evitando toda sorte de
contato e atividade que pudesse atraí-la para o mundo público. A medicina
fundamentava essas concepções em bases científicas, mostrando que o crânio
feminino, assim como toda sua constituição biológica, fixava o destino da
mulher: ser mãe e viver no lar, abnegadamente, cuidando da família”.
O espaço da rua nas
primeiras décadas da República, tinha um discurso nada favorável a presença
feminina, com exceção da figura da educadora ou professora. Porém, a
necessidade de sobrevivência numa sociedade industrial como em Rio Grande ,
possibilitará a lenta conquista de lugares frente à produção industrial, num
processo desencadeado pelo próprio sistema capitalista que necessita de
mão-de-obra. Para termos ideia da dimensão operária da cidade, no ano de 1900,
Rio Grande tinha 29.000 habitantes e entre 8.000 e 10.000 operários.
Nas fábricas homens e
mulheres exerciam atividades diferenciadas havendo o trabalho de homem e o trabalho
de mulher. O trabalho feminino era usado nas tarefas que exigiam dedos
dedicados e ágeis, paciência, lida com alimentos, fios e agulhas. Já os homens
cabiam tarefas envolvendo músculos e trabalho pesado. As mulheres estavam mais
presentes nas indústrias têxtil e alimentícia.
A fábrica era vista
como um lugar impróprio para o sexo feminino por ser insalubre e um ‘antro de
perdição’, o que ameaçava a saúde e a moral das mulheres. Conforme Sabrina Meirelles
Macedo, as operárias enfrentavam, como todos os operários, péssimas condições
de trabalho: ambiente fabril insalubre, falta de garantias trabalhistas, carga
horária exaustiva, baixos salários e ainda, assédio e violência sexual por
parte dos patrões e supervisores. O trabalho feminino também motivou um
conflito da sobrevivência entre homens e mulheres operários. A preferência dos
patrões por empregar mão-de-obra feminina foi um dos motivos que levou a imprensa
operária a assumir uma postura de denúncia da exploração que as mulheres
sofriam nas fábricas por sua condição mais fragilizada. Além da visão do homem
operário de que a mulher não deveria se submeter ao trabalho no espaço da rua,
permeava este discurso o próprio conflito pelo mercado de trabalho. Por ser uma
mão-de-obra mais barata, a mulher ameaçava a mão-de-obra masculina e por vezes,
retirava do homem o papel de provedor da família, invertendo-se os papéis
sexuais previamente estabelecidos, contrariando-se a moral social corrente na
época. A expansão das fábricas têxteis e alimentícias, concentradoras da
mão-de-obra feminina, proporcionaram à mulher uma maior notoriedade nos espaços
públicos e nos locais de trabalho, lugares ditos de homens. Ou seja, a presença
feminina nas fábricas era motivo de conflito até entre o operariado.
Um exemplo do difícil
cotidiano do trabalho está expresso num processo criminal e numa “malandragem
advocatícia” que expressava parte da mentalidade da época. É o caso da sra.
Martha Maurano que trabalhava como cozinheira em uma padaria. Martha prestou
queixa contra o noivo de sua filha, Hercília de 17 anos, operária da
Rheingantz, por este ter deflorado sua filha enquanto ela estava trabalhando na
padaria. O advogado de defesa argumentou que Hercília se “entregou espontaneamente,
até com o consentimento de sua própria mãe, pois que não é crível que se
tratando de uma moça, filha honesta e virgem, essa mãe se retirasse de casa
para cozinhar em uma padaria, deixando só, abandonada às suas exclusivas
forças, uma filha menor e virgem (Processo n.365, Rio Grande, 1918). Ou seja,
ao ausentar-se da casa para “trabalhar” Martha abandonou suas obrigações de mãe
expondo sua filha a violência, rompendo com o seu papel de ‘Anjo Tutelar’.
Conforme Isabel Bilhão em caso de “crime de sedução, o comportamento das mães
das vítimas era um dos aspectos analisados pelas autoridades jurídicas, e,
dificilmente, se a vítima fosse (...) filha de uma mulher sozinha e que
trabalhasse fora, receberia ganho de causa em um processo judicial”.
A difícil vida da
mulher operária não se resumia ao ambiente de trabalho e aos baixos salários:
era preciso romper as barreiras da mentalidade de que o trabalho era avesso à
condição feminina.
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