Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 5 de agosto de 2017

RIO GRANDE EM TEMPOS DE CÓLERA

O cólera, uma doença infecciosa aguda, caracterizada por diarréia, prostração e cãibras, surgiu no Oriente, alastrou-se pela Europa, cruzou o Atlântico e chegou ao Rio de Janeiro e portos do nordeste no ano de 1855. Em novembro deste ano, os primeiros casos surgem na Província do Rio Grande de São Pedro e são registrados em Pelotas, quando, vindos do Rio de Janeiro a bordo do paquete Imperatriz, passageiros contaminados pelo vibrião desembarcaram no porto do Rio Grande. Seguindo o curso de navegação pela Lagoa dos Patos e estuário do Guaíba, a doença disseminou-se pela Província.
         Os jornais da época cederam um grande espaço às notícias sobre a evolução da doença no Brasil, demonstrando apreensão frente ao alastramento da epidemia. Rio Grande era considerada, assim como as cidades portuárias, um fácil centro de proliferação da doença. O Diário do Rio Grande de 25 de outubro de 1855, num comunicado, indica o clima de apreensão reinante. “Cólera Morbus, eis a palavra que eletricamente sai duma para outra boca e que fere todos os ouvidos de sorte a causar geral consternação na massa do povo. Essa peste, que se limitava a ser horrível furacão longe de nós, com terrorismo se norteia para o Brasil e sucessivamente, atravessando o Pará e a Bahia, no Rio de Janeiro, inúmeras vítimas varrem de cima para baixo da terra: e a ciência, apesar de se erguer em extensa, alta e espessa muralha, se vê, em um outro ponto, escalada pela violência do mal que nos amedronta”.
         O mesmo jornal no dia 28 de outubro publica um apedido com dados sobre a inspeção de saúde para a Guarda Nacional, onde, entre 518 homens inscritos, 51 apresentavam alguma moléstia. O autor da matéria, afirmou que “não há clima mais infectado que nesta cidade” projetando que mais de 1.200 pessoas sofriam de alguma doença e concluindo: “Se por desgraça nossa, vier visitar a estas plagas arenosas o infernal cólera, que número de doentes não haverá?”
         A cidade do Rio Grande apresentava, pelo censo de 1848, uma população de 10.152 habitantes. Em 1858, a população aumentou para 13.514 habitantes constituída de 2.087 escravos (15,4% do total). Quando da eclosão do cólera, a população era de aproximadamente 12.000 habitantes e de 2.000 escravos (estimativas). Conforme levantamento de óbitos realizado junto ao Bispado do Rio Grande, 153 escravos morreram de cólera entre os dias 06 de dezembro de 1855 e 04 de abril de 1856, sendo 105 (68,6%) do sexo masculino e 48 (31,3%) do sexo feminino. Nesta projeção, 7,65% dos escravos da cidade morreram devido à doença. A estimativa de vítimas para a Província, numa população de 280.000 habitantes foi de 4.000 (1,42% do total). Na cidade, chegou ha cerca de 500 vítimas (4,1% do total), porém, dados precisos ainda não foram coletados para a população não escrava. Porto Alegre apresentou a situação mais crítica, pois frente a uma população de 15.000 habitantes teve 1.405 mortos (9,3% do total).
         Rio Grande está aberta a chegada das epidemias através do porto. Neste sentido, desde o seu surgimento na cidade no século 19, a imprensa denúncia o livre acesso das embarcações ao espaço urbano. O jornal O Povo do dia 16 de dezembro de 1855 destacou: "Meio ano havia se esgotado, quando apareceu nesta cidade o cólera morbus, que já devastava o nosso irmão das províncias do norte, e nós sabedores das inúmeras vítimas que eram por ele ceifadas, permanecíamos de braços cruzados e impassíveis sem cuidarmos e nos preparar a exemplo das províncias da Bahia e Rio de Janeiro para recebermos tão horrível hóspede. Apenas se clamava contra o digno Provedor da Saúde, por que este, não tendo recebido participação oficial, nem ordem expressa da presidência, não estabelecia a quarentena nos navios procedentes de lugares afetados da epidemia, julgando-se talvez que era isto o meio mais provável e seguro para impedir que ela se desenvolve-se entre nós, no entanto que nenhuma providência higiênica se tomava, de nenhuma medida sanitária se cuidava, nem se tratava de estabelecer convenientemente por ordem da autoridades ou pela filantropia dos habitantes abastados da cidade, enfermarias em que se tratassem as pessoas pobres que fossem acometidas da peste”.
As precárias condições urbanas eram duramente criticadas pelo mesmo jornal nesta mesma edição, descrevendo o seguinte panorama da cidade que se confrontava com a epidemia: “A câmara municipal desta cidade, desprezando as indicações higiênicas há serem empregadas como meio preventivo contra a ação do cólera morbus, quando ele nos acometesse, pecou gravemente e nada há que a possa isentar da indignação de que se acha possuída a população desta cidade. A Câmara desprezou inteiramente, a idéia de construção de um novo cemitério plano este desde muito tempo por ela mesmo traçado. Ninguém que ignore, quão prejudicial nos é a inumação dos corpos que falecem da peste, em um cemitério tão próximo da cidade e se continuasse à persistência da câmara em não demarcar um lugar fora das trincheiras e consentisse que os cadáveres fossem sepultados uns sobre os outros, como já se praticava no cemitério antigo por falta de espaço, ver-nos íamos constantemente infectados do cólera, pois que para o seu desenvolvimento bastavam os miasmas que tão perto nos viessem. Ordenou que se abrissem valas de um ou dois palmos de profundeza nos mesmos lugares em que permaneciam as imundícies, e que ali fossem enterradas, julgando que era bastante isto para livrar a cidade das exalações pútridas. O matadouro público vos bem sabeis que ainda existe no mesmo estado. O boi que ali morto não precisa de outra prisão mais do que o lodaçal em que fica atolado, para se conservar imóvel e pacífico a esperar a morte. As barracas do mercado continuam a serem permitidas contra todas as conveniências sanitárias porque basta encarar para a fachada de semelhantes albergues, para reconhecer-se evidentemente que neles existem todas as condições essenciais para por si só desenvolverem uma epidemia no lugar. O dique não foi atulhado, e é um verdadeiro poço de lama e imundícies que nas marés baixas ficam expostas ao calor do sol, e exalam um fétido bem desagradável”.

A TECNOLOGIA E A PESTE
         No combate a doença, um meio de comunicação passou a fazer parte do cotidiano da população rio-grandina. Administrado pela enfermaria dos coléricos, o telégrafo torna-se uma alternativa de agilização do socorro às vítimas. O responsável pela inovação, em nível local, é o Dr. Zalony que explicou o funcionamento do novo sistema: “A enfermaria dos coléricos inaugurou um sistema de telegrafia para a maior prontidão da condução dos enfermos e também para facilitar a cada um em particular, o chamamento de qualquer médico ou sacerdote a sua casa”.(Diário do Rio Grande, 22/12/1855). “Os moradores acudirão ao telégrafo vizinho de sua moradia”, prossegue Zalony, “e um vigia acudirá ao sinal de socorro e tomará as medidas necessárias”.
Na busca dos fatores que conduziram à contaminação, remédios e matérias escritas por farmacêuticos vem à tona, buscando orientar as pessoas e vender produtos. O restrito conhecimento do universo microscópico induziu à especulação: “Desde já, pois, no receio de sermos tocados pelo tufão da peste, lancemos mão de todos os meios aconselhados pela ciência e um grande passo daremos para longe da violência do mal. (...) É de fato e de demonstração, que muitas moléstias pestilentas tem a sua origem em miasmas, e também é de fato e de demonstração, que esses danosos e virulentos crepúsculos, são gerados em focos, tais como águas estagnadas e de mistura com matérias orgânicas e imundícies dispersas em diferentes pontos de uma cidade ou povoação, que em suspensão na atmosfera, deleteriamente se introduzem no organismo.” (O Diário do Rio Grande, 25/10/1855).
O enfoque está ligado à contaminação pelo ar e não pela água ou alimentos contaminados pelo vibrião colérico. As precárias condições de higiene e a utilização de água contaminada são fatores que catalisaram a proliferação da doença. Numa sociedade escravista formada por uma considerável população cativa ou de negros libertos, a epidemia pôs fim a vida de milhares de pessoas na Província e dezenas de milhares no restante do Brasil. Em Rio Grande, os meses de dezembro de 1855 e janeiro de 1856 foram de ruptura das atividades, de angústia e de dor. Afinal, o desconhecimento do mecanismo de contaminação tornou a epidemia triunfante em seu caminho de ceifar vidas de senhores e escravos. As apreensivas notícias da marcha devastadora do cólera em outras Províncias, tornaram-se uma cruel realidade quando os casos começaram a se multiplicar na cidade do Rio Grande, expondo a vulnerabilidade do saber médico-higienista.



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