Porto do Rio Grande em 1908

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sábado, 5 de agosto de 2017

FRAGMENTOS DA VIDA SOCIAL EM RIO GRANDE - 1820

O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, chegou à cidade do Rio Grande no dia 06 de agosto de 1820 nela permanecendo até o dia 05 de setembro.
         O estilo irreverente utilizado por Saint-Hilaire ao descrever o cotidiano dos habitantes, sua visão européia baseada no racionalismo científico e na valorização da intelectualidade, a caracterização das pessoas e lugares sociais ocupados, demonstram uma projeção de valores europeus dos primórdios do século XIX. Nesse sentido, não foram somente os negros e os índios que sofreram leituras depreciativas, mas as próprias elites são muitas vezes associadas à falta de prepara intelectual, exatamente pelo restrito acesso ao universo literário e científico.
         Os trechos de seu Diário (SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ERUS/Martins Livreiro, 1987) referentes à Rio Grande, não fogem da caracterização europocêntrica e fundada no Antigo Regime, válida para outras cidades e regiões por ele visitada. Membro de uma família de nobres franceses, o estilo irreverente e debochado está presente nas impressões que ficaram no contato com a elite de Rio Grande.
         Ao chegar à cidade, Saint-Hilaire acompanhado do governador da Capitania Conde de Figueira foram conduzidos à Igreja de São Pedro a qual se “achava enfeitada com faixas de damasco vermelho, como nos maiores dias de festa e os degraus do altar-mor completamente cheios de velas acesas”. O Te-Deum foi cantado e após um “pregador subiu ao púlpito” tecendo elogios e “mil outras lisonjas vulgares e mal expressadas” ao Conde. Durante esse tempo “ficara exposto o Santíssimo Sacramento, mas a assistência nem por isso guardava respeito, portando-se quase como se estivesse num mercado”.
         Finalizada a cerimônia religiosa, o padre conduziu os visitantes à casa do Tenente-General Marques para um jantar, considerado excelente pelo nobre francês: “a mesa estava coberta de uma quantidade de travessas, guisados e ensopados de toda qualidade”. Num segundo momento foram servidos “assados, saladas e massas”. Após o jantar “levantamo-nos da mesa e fizeram-nos passar a uma outra sala, onde encontramos uma sobremesa magnífica, composta de uma variedade de bombons e doces”. Depois da narração sobre a vulgaridade dos participantes da missa à fartura do jantar seduziu parcialmente o naturalista. Mas só parcialmente, pois o olhar ácido perseguiu sistematicamente os presentes. Tendo a reunião prolongado-se pela madrugada e estando a maioria dos convidados embriagados, Saint-Hilaire escreve que os portugueses e brasileiros “costumam beber o vinho puro, e nos grandes banquetes, o nocivo hábito de erguer brindes excita-os a tomarem em excesso”. Em decorrência desse hábito, no “day after” todos estavam “tristes e fatigados”.
         Em outra atividade social, ocorrida no dia 13 de agosto, Saint-Hilaire foi a um baile especialmente programado para ele e o Conde de Figueiras. Estes chegaram ao local marcado às dezenove horas encontrando “cerca de sessenta senhoras reunidas em um salão forrado de papel francês”. As senhoras estavam “todas muito bem trajadas, usavam vestidos de seda branca, sapatos e meias de seda; jovens e velhas traziam à cabeça descoberta, os cabelos armados por uma travessa e enfeitados com flores artificiais”. As mulheres estavam “sentadas ao redor do salão, em cadeiras colocadas uma diante das outras” enquanto os homens “em muito menor número, conservavam-se de pé”. Com a presença de padres bem trajados em suas batinas, um reduzido efetivo masculino com restrita empolgação para dançar “valsas e inglesas”, o francês conclui que “nunca vi coisa tão monótona”. Era preciso, “obrigar os homens a tirar as senhoras para dançar e, a exceção do Conde, nenhum cavalheiro lhes dirigia a palavra”. Tanto a falta como o excesso de um clima sensualmente mais efusivo, são fatores de crítica: “Uma jovem dançou um solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude deixar de lamentar que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos”. Deixando-se tomar pelo tédio, o naturalista “francamente aborrecido” retirou-se do baile logo que começou a ceia.
         Depreende-se que um abismo o convívio no universo da corte francesa e os olhares sobre as tentativas de reprodução pelas elites locais de padrões culturais europeus, não convenciam o olhar do nobre que transitava entre o tédio e o discurso moralizador.
         No dia 16 de agosto, a realização de outro baile, na casa de um rico comerciante, permitiu destacar elementos sobre a vida social da elite local. As senhoras encontradas, foram na maior parte, às mesmas do evento anterior. A estética e psique da mulher rio-grandina da época e delimitada na sutil observação do cáustico naturalista: as mulheres “possuem olhos e cabelos negros, bela tez e boa cor, mas, em geral, sem graça, sem atrativos, dados pela educação social que as mulheres desta região não recebem”. Os motivos para a falta de atrativo intelectual, estão relacionados à ausência de escolas e pensionatos para as moças “criadas no meio dos escravos” e desde a “mais tenra idade, têm elas diante de si o exemplo de todos os vícios, adquirindo, via de regra, o hábito do orgulho e da baixeza”. A maioria delas “não sabem ler nem escrever: aprendem algumas costuras, a recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo”. As brasileiras, em geral “ignoram os encantos da sociedade e os prazeres da boa conversação”, porém “nesta região as mulheres se ocultam menos do que as das Capitanias do interior”. Nesse sentido, possuem “melhores noções de vida; são desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita distância das mulheres européias”.

         Constatando a inviabilidade de acesso à educação formal, Saint-Hilaire faz uma leitura da mulher européia como o referencial feminino. Porém, para dividir o ônus da ausência de civilidade das mulheres estão os homens da elite rio-grandina  “europeus, nascidos em um meio inferior e que não receberam educação alguma”. Desta forma,  o yin e o yang, encontram o equilíbrio na ausência de civilidade.   

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