História e Historiografia do RS

quinta-feira, 13 de julho de 2017

UMA NOITE TEMPESTUOSA DE 1816

Noite escura e tenebrosa onde as sombras da noite se abatem opressivamente sobre os moradores da cidade. O céu está repleto de nuvens que assumem formas estranhas que se modificam com rapidez ao ritmo frenético do vento. Um turbilhão de areia começa a se projetar das dunas que cercam e asfixiam a cidade. Foi um dia demasiadamente quente para o mês de outubro e o mau tempo começa a estender seus tentáculos em direção a fraquejante urbe que luta para não ser soterrada pelas areias voadoras que a circundam.
Esse ano de 1816 tem sido difícil para os moradores, pois dois intensos temporais causaram danos e provocaram naufrágios no estuário da Lagoa dos Patos. Quatro pescadores morreram afogados quando sua embarcação sumiu entre as marolas da lagoa.
Os fortes ventos que se desencadearam com a primavera têm provocado o soterramento de muitas casas que ficam ao sul da Vila do Rio Grande. Soma-se a isto, uma implacável seca que transformou em palha grande parte das plantações e também a cobertura vegetal consumida pelos animais. A fome está rondando a Vila!
Ontem, uma procissão foi organizada pela Ordem de São Francisco e seguiu pelas ruas Direitas e da Praia suplicando a Deus o fim dos infortúnios e teve a participação de grande parte dos moradores. Afinal, o catolicismo é o lenitivo para os males do corpo e da alma nesta Vila de tradição na cristandade portuguesa!
Quando o mau tempo espreita, a noite sempre traz apreensão nas mal desenhadas ruas, nos becos e nas vielas tenuamente iluminadas por poucos lampiões. São tantas histórias contadas pelos antepassados de tempestades destruidoras que mostraram sua face e dimensão noturna e quando o dia amanhecia os estragos estavam por toda a parte. Cair à noite é colocar as pesadas trancas de madeira nas portas e janelas e só voltar a abri-las pela manhã ou frente à súplica de uma voz conhecida.
 A madrugada é o espaço dos ébrios ou de entidades malignas que circundam pelas ruas! Numa noite tempestuosa estas entidades parecem gemer com o vento e elas parecem libertar qualquer pudor de malignidade lançando-se sobre as portas, janelas e tentando arrancar os telhados. Parece ser apenas a ação do vento, mas é muito mais do que o ar em movimento... Quantos séculos de opressão medieval ainda estão vivos nos cérebros dos moradores? Quantas apreensões irracionais e crenças antigas dormitam e afloram nos momentos de medo e pânico? Inesgotáveis afloramentos dos receios do próprio sentido da existência consomem e devaneiam até os homens mais robustos e guerreiros dos pampas ainda indivisos...
E a escuridão se estende de súbito. No horizonte um som intenso vai se ampliando até se tornar ensurdecedor! O vento carrega à areia que se lança vorazmente sobre cada tijolo construído com sacrifício. Pela fresta da janela é possível ver o turbilhão que cruza pela rua Direita arrastando objetos e desfocando os prédios do outro lado. Um lampião de óleo de baleia balança incessantemente até ser jogado com violência ao chão. A rua se tornou uma treva completa! O som de telhas sendo arrancadas e a sensação da casa estar sendo sacudida pode não ser apenas fruto da imaginação!
Que danos podem estar causando nas embarcações? Estará ocorrendo algum naufrágio? Que estragos poderão estar provocando nos navios parcamente atracados junto aos trapiches do porto o qual é constituído de frágeis estacadas? Ao amanhecer será preciso fazer um mutirão para retirar à areia que terá soterrado várias casas localizadas na região do Largo do Moinho (hoje em direção a Aquidaban). Quantas pessoas já morreram soterradas pela areia durante a madrugada?
Às horas se passaram em meio ao som ensurdecedor que parecia pronunciar o apocalipse e que após a meia-noite se transformou em chuva intensa e persistente.
Quando amanhecer quem terá coragem para sair à rua e constatar que não foi apenas um pesadelo de primavera, mas uma experiência real e devastadora neste irascível ano de 1816?

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