Noite escura
e tenebrosa onde as sombras da noite se abatem opressivamente sobre os
moradores da cidade. O céu está repleto de nuvens que assumem formas estranhas
que se modificam com rapidez ao ritmo frenético do vento. Um turbilhão de areia
começa a se projetar das dunas que cercam e asfixiam a cidade. Foi um dia
demasiadamente quente para o mês de outubro e o mau tempo começa a estender
seus tentáculos em direção a fraquejante urbe que luta para não ser soterrada
pelas areias voadoras que a circundam.
Esse ano de
1816 tem sido difícil para os moradores, pois dois intensos temporais causaram
danos e provocaram naufrágios no estuário da Lagoa dos Patos. Quatro pescadores
morreram afogados quando sua embarcação sumiu entre as marolas da lagoa.
Os fortes ventos
que se desencadearam com a primavera têm provocado o soterramento de muitas
casas que ficam ao sul da Vila do Rio Grande. Soma-se a isto, uma implacável
seca que transformou em palha grande parte das plantações e também a cobertura
vegetal consumida pelos animais. A fome está rondando a Vila!
Ontem, uma
procissão foi organizada pela Ordem de São Francisco e seguiu pelas ruas
Direitas e da Praia suplicando a Deus o fim dos infortúnios e teve a
participação de grande parte dos moradores. Afinal, o catolicismo é o lenitivo
para os males do corpo e da alma nesta Vila de tradição na cristandade
portuguesa!
Quando o mau
tempo espreita, a noite sempre traz apreensão nas mal desenhadas ruas, nos
becos e nas vielas tenuamente iluminadas por poucos lampiões. São tantas
histórias contadas pelos antepassados de tempestades destruidoras que mostraram
sua face e dimensão noturna e quando o dia amanhecia os estragos estavam por
toda a parte. Cair à noite é colocar as pesadas trancas de madeira nas portas e
janelas e só voltar a abri-las pela manhã ou frente à súplica de uma voz
conhecida.
A madrugada é o espaço dos ébrios ou de
entidades malignas que circundam pelas ruas! Numa noite tempestuosa estas entidades
parecem gemer com o vento e elas parecem libertar qualquer pudor de malignidade
lançando-se sobre as portas, janelas e tentando arrancar os telhados. Parece
ser apenas a ação do vento, mas é muito mais do que o ar em movimento...
Quantos séculos de opressão medieval ainda estão vivos nos cérebros dos
moradores? Quantas apreensões irracionais e crenças antigas dormitam e afloram
nos momentos de medo e pânico? Inesgotáveis afloramentos dos receios do próprio
sentido da existência consomem e devaneiam até os homens mais robustos e
guerreiros dos pampas ainda indivisos...
E a
escuridão se estende de súbito. No horizonte um som intenso vai se ampliando
até se tornar ensurdecedor! O vento carrega à areia que se lança vorazmente
sobre cada tijolo construído com sacrifício. Pela fresta da janela é possível
ver o turbilhão que cruza pela rua Direita arrastando objetos e desfocando os
prédios do outro lado. Um lampião de óleo de baleia balança incessantemente até
ser jogado com violência ao chão. A rua se tornou uma treva completa! O som de
telhas sendo arrancadas e a sensação da casa estar sendo sacudida pode não ser
apenas fruto da imaginação!
Que danos podem
estar causando nas embarcações? Estará ocorrendo algum naufrágio? Que estragos poderão
estar provocando nos navios parcamente atracados junto aos trapiches do porto o
qual é constituído de frágeis estacadas? Ao amanhecer será preciso fazer um
mutirão para retirar à areia que terá soterrado várias casas localizadas na
região do Largo do Moinho (hoje em direção a Aquidaban). Quantas pessoas já
morreram soterradas pela areia durante a madrugada?
Às horas se
passaram em meio ao som ensurdecedor que parecia pronunciar o apocalipse e que
após a meia-noite se transformou em chuva intensa e persistente.
Quando
amanhecer quem terá coragem para sair à rua e constatar que não foi apenas um
pesadelo de primavera, mas uma experiência real e devastadora neste irascível
ano de 1816?
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